Endocrinologia

Fibrose Cística: Complicações Endocrinológicas

Parte III do especial sobre Fibrose Cística. As complicações endócrinas são o assunto de hoje, com detalhes sobre as influências no crescimento, no desenvolvimento ósseo e na puberdade.

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Como já mencionamos nos posts anteriores, o aumento da sobrevida dos pacientes com fibrose cística (FC) tem ocasionado diversas complicações endocrinológicas, sendo a mais comum delas o diabetes, abordado no último post desta série (encontre link para o texto logo abaixo). Contudo, existem ainda outras complicações relacionadas ao crescimento, à puberdade, função tireoidiana e ao metabolismo ósseo, as quais veremos a seguir.

Relembre o post anterior da série…

A Diabetes como complicação da Fibrose Cística

 

Fibrose cística: efeitos no crescimento

A função pituitária (hormônio do crescimento, gonadotrofinas e ACTH) não se encontra alterada na FC. Porém, infecções crônicas, déficits nutricionais e uso crônico de esteroides podem contribuir para uma resistência ao hormônio de crescimento (GH), além de reduzir sua secreção.

Peso e altura são ligeiramente reduzidos em comparação a crianças sem a doença, sendo a taxa de crescimento desses lactentes menor durante o primeiro ano de vida, principalmente por conta da nutrição prejudicada. Todavia, indivíduos diagnosticados por meio de triagem neonatal são mais altos do que as crianças com diagnóstico mais tardio. Apesar dessas alterações, a velocidade de crescimento na infância está dentro dos limites normais.

O déficit de altura pode aumentar ainda mais na adolescência, devido ao atraso puberal e ao agravamento do quadro clínico. A altura de adultos geralmente se encontra dentro dos limites de normalidade para a população, porém reduzido para o canal familiar.

 

Considerações importantes

Uma avaliação mais aprofundada é necessária para as crianças…:

  1. Que estejam caindo de percentil;
  2. Com baixa velocidade de crescimento para a faixa etária (avaliação no período de 6 meses a um ano);
  3. Abaixo do percentil 3 do gráfico de altura ou do canal familiar, mesmo que a velocidade de crescimento esteja normal.

Considere sempre, também, a verificação de causas não relacionadas à FC, como…

  • doença celíaca
  • hipotireoidismo
  • síndrome de Turner (nem sempre associada a características clínicas), entre outras.

A deficiência de GH é uma causa rara de baixa estatura na população geral e também pode ocorrer na FC, apesar de sua prevalência não ser aumentada. Ela deve ser considerada em crianças com baixa estatura e baixa velocidade de crescimento persistente, após outras causas terem sido descartadas.

O uso do GH em pacientes com FC sem deficiência desse hormônio traz benefícios anabolizantes a curto prazo, sendo desconhecido seu impacto no estado clínico a longo prazo. Não existe qualquer evidência de que o GH aumente a altura final nessa população. Portanto, o GH não está licenciado para uso em FC sem deficiência de GH.

 

Referências Científicas desta seção

  • Amorim Pollyana Garcia, Mendes Thaís de Barros, Oliveira Lílian Santiago Pinho de, Guerra-Júnior Gil, Ribeiro José Dirceu. Hormônio de crescimento em crianças e adolescentes com fibrose cística. Arq Bras Endocrinol Metab  [Internet]. 2011  Dez [citado  2018  Maio  17] ;  55( 9 ): 671-676. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0004-27302011000900001&lng=pt.  http://dx.doi.org/10.1590/S0004-27302011000900001.
  • Bizzarri, C. , Montemitro, E. , Pedicelli, S. , Ciccone, S. , Majo, F. , Cappa, M. and Lucidi, V. (2015), Glucose tolerance affects pubertal growth and final height of children with cystic fibrosis. Pediatr Pulmonol., 50: 144-149. doi:1002/ppul.23042
  • Ripa, P. , Robertson, I. , Cowley, D. , Harris, . M., Masters, I. B. and Cotterill, . A. (2002), The relationship between insulin secretion, the insulin‐like growth factor axis and growth in children with cystic fibrosis. Clinical Endocrinology, 56: 383-389. doi:1046/j.1365-2265.2002.01484.x
  • Blackman, S. M., & Tangpricha, V. (2016). Endocrine Disorders in Cystic Fibrosis. Pediatric Clinics of North America63(4), 699–708. http://doi.org/10.1016/j.pcl.2016.04.009

 

 

Fibrose cística: efeitos na puberdade

Como já mencionamos anteriormente, as gonadotrofinas e secreção dos esteroides sexuais é normal durante a puberdade, sendo os níveis adultos geralmente dentro da faixa de normalidade.

Os meninos atingem volumes testiculares normais na puberdade, apesar da maioria deles apresentar azoospermia obstrutiva secundária à agenesia congênita ou hipoplasia de ductos deferentes.

Sabe-se que pacientes homozigotos para a mutação F508del e com intolerância à glicose apresentam um atraso no desenvolvimento puberal em comparação com adolecentes sem a doença, e que esse atraso puberal pode ocasionar problemas psicológicos na adolescência.

 

Opções de tratamento

Quando avaliamos como pouco provável que a puberdade se inicie espontaneamente, devemos considerar tratamento para indução da puberdade. Muitos indivíduos começam a desenvolver a puberdade após alguns meses de tratamento, sendo a medicação muitas vezes interrompida.

Não há problema em parar o tratamento a qualquer momento, mas caso a puberdade espontânea não ocorra, o tratamento deve ser continuado até o desenvolvimento adulto.

Os benefícios potenciais de tratamento incluem melhoras:

  1. Psicológica e social;
  2. Na altura;
  3. Na densidade mineral óssea.

Estudos têm tentado associar o efeito estrogênico a uma pior evolução da FC em mulheres.

Um estudo publicado no New England Journal of Medicine em 2012 demonstrou que a exposição prolongada in vitro ao estradiol/estriol induzia uma mutação tipo frameshift no mucA da P. aeruginosa. In vivo, verificou-se uma frequência maior de exacerbações pulmonares durante a fase folicular, provavelmente secundária ao aumento dos níveis estrogênicos. Contudo, estudo cross over realizado em Londres não conseguiu demonstrar efeitos dos anticoncepcionais orais na severidade da doença.

 

Referências Científicas desta seção

  • Sutton S, Rosenbluth D, Raghavan D, Zheng J, Jain R. Effects of puberty on cystic fibrosis related pulmonary exacerbations in women versus men. Pediatr Pulmonol. 2014;49(1):28-35.
  • Chotirmall SH, Smith SG, Gunaratnam C, Cosgrove S, Dimitrov BD, O’Neill SJ, et al. Effect of estrogen on pseudomonas mucoidy and exacerbations in cystic fibrosis. N Engl J Med. 24 de maio de 2012;366(21):1978–86.
  • Kernan NG, Alton EWFW, Cullinan P, Griesenbach U, Bilton D. Oral contraceptives do not appear to affect cystic fibrosis disease severity. Eur Respir J. 1o de janeiro de 2013;41(1):67–73.
  • Blackman, S. M., & Tangpricha, V. (2016). Endocrine Disorders in Cystic Fibrosis. Pediatric Clinics of North America63(4), 699–708. http://doi.org/10.1016/j.pcl.2016.04.009

 

 

Fibrose cística: doença óssea relacionada

A expressão da proteína CFTR também foi encontrada por imunohistoquímica em osteoblastos, osteoclastos e osteócitos. Nos pacientes com fibrose cística, há uma reabsorção óssea aumentada, associada à formação óssea diminuída desde a infância; provavelmente, ambos estão relacionados à inflamação crônica e a infecções recorrentes. Todavia, os marcadores séricos de reabsorção óssea não se encontram consistentemente elevados, com exceção do período de exacerbações pulmonares.

Aproximadamente 25% de adultos com FC têm osteoporose, com consequente aumento do risco de fraturas vertebrais e não vertebrais.

Estudos em animais demonstraram que a disfunção da proteína CFTR leva a uma alteração de cartilagem nas vias aéreas, o que poderia prejudicar ainda mais a função pulmonar já comprometida. Além disso, fraturas vertebrais e de costelas poderiam causar uma cifose importante, com consequente comprometimento da arquitetura torácica, ocasionando um clearance inefetivo de vias aéreas e gerando limitações para fisioterapia respiratória.

O aumento da densidade mineral óssea (pico de massa óssea) acontece na puberdade, sob a influência dos esteroides sexuais. Portanto, devemos obter a melhor densidade mineral óssea possível nessa fase, na esperança de reduzirmos problemas futuros.

A avaliação óssea gold standard se faz pelo Dual-energy X-ray absorptiometry (DXA), exame que deve ser realizado com medidas de corpo inteiro e coluna lombar, quando o paciente for abaixo de 20 anos, e coluna lombar e quadril acima de 20 anos. Deve-se sempre utilizar valores de Z score para indivíduos abaixo de 20 anos.

A interpretação da pontuação de Z score pode ser de difícil caso a criança seja muito baixa ou com atraso puberal – ambos comuns de ocorrerem em pacientes com FC. Dessa forma, medidas repetidas de um mesmo indivíduo são mais úteis para acompanhamento e avaliação dessa população.

 

Conceitos

  • Baixa densidade mineral óssea: Z score <-2 (doença óssea relacionada à FC – DORFC).
  • Osteoporose: Z score <-2 + fratura de baixo impacto ou em ossos longos OU T score <-2,5.

A densitometria deve ser solicitada a partir de 8-10 anos para todos os pacientes com FC. A partir dessa primeira avaliação, realizar repetições…

  • de 5 a 5 anos, se Z score ≥-1;
  • de 2 a 2 anos, se -2< Z score <-1;
  • anualmente, se Z score ≤-2 ou ocorram fraturas de baixo impacto ou exista uso contínuo de corticoide sistêmico.

É importante ficarmos atentos, pois uma dor torácica pode estar relacionada a uma fratura de coluna desapercebida.

 

Doença óssea relacionada à FC: causas e tratamentos

As causas da DORFC são inúmeras:

  • Comprometimento do estado nutricional;
  • Infecções/Inflamação crônica;
  • Balanço de cálcio negativo;
  • Atraso puberal (hipogonadismo);
  • DRFC;
  • Medicações (glicocorticóides/imunossupressores);
  • Atividade física reduzida.

O tratamento com bifosfonatos não reduz o número de fraturas e têm pouco efeito na massa óssea dos pacientes com FC, o que sugere um comprometimento na linhagem osteoblástica, além da osteoclástica. Contudo, cogita-se o uso dos bifosfonatos nos casos abaixo:

  • Após complementação de cálcio, vitamina D e vitamina K, se necessário;
  • Perda de massa óssea >4% ao ano;
  • Adultos em uso de corticoide sistêmico por um período igual ou superior a 3 meses e T score <-1,5 (lombar, quadril ou fêmur) ou fraturas de baixo impacto repetidas;
  • T score ≤-1,5 e aguardando ou transplante órgão sólido realizado;
  • Crianças em uso de corticoide sistêmico por um período igual ou superior a 3 meses e Z score ≤-2 ou fraturas de baixo impacto repetidas.
  • Z score ≤-2 e aguardando transplante ou com transplante órgão sólido realizado.

Lembrando que, caso ocorra atraso puberal, deve-se considerar o tratamento com esteroides sexuais, uma vez que o pico de massa óssea acontece durante a puberdade.

Assim sendo, o principal objetivo no caso da DORFC é manter a vigilância e início da terapia na tentativa de reduzir a morbidade relacionada às fraturas.

 

Referências Científicas desta seção

  • Blackman, S. M., & Tangpricha, V. (2016). Endocrine Disorders in Cystic Fibrosis. Pediatric Clinics of North America63(4), 699–708. http://doi.org/10.1016/j.pcl.2016.04.009
  • Sermet-Gaudelus I, Bianchi ML, Garabédian M, Aris RM, Morton A, Hardin DS, et al. European cystic fibrosis bone mineralisation guidelines. J Cyst Fibros Off J Eur Cyst Fibros Soc. junho de 2011;10 Suppl 2:S16-23.
  • Jacquot J, Delion M, Gangloff S, Braux J, Velard F. Bone disease in cystic fibrosis: new pathogenic insights opening novel therapies. Osteoporos Int. 1o de abril de 2016;27(4):1401–12.
  • Bone health and disease in cystic fibrosis. Marquette, Malcolm et al. Paediatric Respiratory Reviews , Volume 20 , 2 – 5
  • Update on Cystic Fibrosis-Related Bone Disease: A Special Focus on Children Sermet-Gaudelus I., Castanet M., Retsch-Bogart G., Aris R.M. (2009)  Paediatric Respiratory Reviews,  10  (3) , pp. 134-142.

 

 

Fibrose cística e tireoide

Assim como nos demais órgãos, a proteína CFTR também foi identificada na tireoide. Contudo, o mecanismo para tal ainda não é completamente compreendido, sendo postulado que a deficiência de iodo, associada ao desequilíbrio eletrolítico causado pelo não/mau funcionamento da CFTR, interfere no transporte do iodeto e, consequentemente, na função tireoidiana.

Estudo transversal recente publicado na revista Thyroid em 2016 não demonstrou risco aumentado para disfunção da tireoide na população com FC.

 

Referências Científicas desta seção

  • Blackman, S. M., & Tangpricha, V. (2016). Endocrine Disorders in Cystic Fibrosis. Pediatric Clinics of North America63(4), 699–708. http://doi.org/10.1016/j.pcl.2016.04.009
  • Li, H., Ganta, S., & Fong, P. (2010). Altered ion transport by thyroid epithelia from CFTR−/−pigs suggests mechanisms for hypothyroidism in Cystic Fibrosis. Experimental Physiology95(12), 1132–1144. http://doi.org/10.1113/expphysiol.2010.054700
  • Naehrlich L, Dörr H-G, Bagheri-Behrouzi A, Rauh M. Iodine deficiency and subclinical hypothyroidism are common in cystic fibrosis patients. J Trace Elem Med Biol Organ Soc Miner Trace Elem GMS. abril de 2013;27(2):122–5.
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Dra. Mariana Zorron

Endocrinologista Pediátrica. Mestre em Ciências na área de concentração Saúde da Criança e do Adolescente pela UNICAMP. Membro do Departamento Científico e de Endocrinologia da Sociedade de Pediatria do Estado de São Paulo (SPSP). Atua profissionalmente como médica assistente na UNICAMP e em consultório particular. Responsável pelo ambulatório de diabetes relacionado à FC na UNICAMP.

Endereço do consultório: Clínica Affetto Pediatria – R. Bernardo José Sampaio, 339 – Sala 24, Campinas – SP

Fone: (19) 3231-1954

E-mail: contato@marianazorron.com.br
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