Apendicite — Estamos à Frente de uma Mudança de Paradigma?
Analisamos duas recentes publicações que demonstram a segurança de realizar tratamentos clínicos da apendicite aguda não complicada, com resultados comparáveis aos da apendicectomia.
Efficacy and Safety of Nonoperative Treatment for Acute Appendicitis: A Meta-analysis Pediatrics, Março 2017
Comparison of Antibiotic Therapy and Appendectomy for Acute Uncomplicated Appendicitis in Children: A Meta-analysis JAMA, Março 2017
Comentamos aqui essas duas recentes publicações, de duas das mais renomadas revistas médicas mundiais. Nelas, os autores revisam a literatura científica e demonstram que o tratamento clínico da apendicite aguda não complicada pode ser feito, com relativa segurança, com resultados comparáveis aos da apendicectomia.
A apendicite aguda é uma das urgências pediátricas mais comuns em todo o mundo. Estima-se que o risco de desenvolver apendicite é de cerca de 7% ao longo da vida, sendo que a incidência é maior durante a segunda década de vida. Estima-se também que entre 1 e 8% das crianças que se apresentam às unidades de urgência e emergência por dor abdominal aguda apresentam apendicite.
O risco de desenvolver apendicite é de cerca de 7% ao longo da vida.
Desde os primeiros diagnósticos realizados, há mais de um século (ainda na era pré-antibiótico), a apendicectomia é o carro-chefe do tratamento desta patologia. Entretanto, nas últimas décadas, estudos clínicos realizados em adultos têm demonstrado também a eficácia e a segurança do tratamento não cirúrgico.
APENDICECTOMIA OU TRATAMENTO ANTIBIÓTICO?
As duas metanálises que revisamos aqui trazem resultados congruentes. Como os critérios de seleção dos trabalhos, a metodologia de análise dos dados e os desfechos determinados foram um pouco diferentes entre as duas, os números não são exatamente iguais, mas apontam numa mesma direção. A saber: que possivelmente possamos tratar um grande número de crianças por meio do tratamento não cirúrgico, e que mais estudos nesse sentido são necessários.
Ambos os trabalhos também ressaltam que, em Pediatria, ainda não há evidência clínica suficientemente segura para indicar o tratamento não cirúrgico de rotina na apendicite aguda não complicada, embora os 2 trabalhos tendam a indicar que caminhamos nessa direção. Eles expõem diversos motivos para isso, dentre eles:
- a população estudada ainda é pequena;
- ausência de trabalhos randomizados e controlados de excelência;
- heterogeneidade nos critérios clínicos para indicação de tratamento cirúrgico ou não;
- tempo de follow up dos pacientes variável;
- esquemas de antibióticos diferentes em todos os trabalhos estudados, tanto na escolha das drogas como no tempo de tratamento;
- heterogeneidade nos critérios de sucesso a longo prazo analisados, como qualidade de vida e recorrência de dor abdominal, entre outros.
A primeira coisa que ressaltamos é que o tratamento não cirúrgico está sendo considerado apenas para a apendicite aguda não complicada. Sempre que sinais clínicos ou radiológicos de complicação – tais como abcesso ou perfuração – estiveram presentes, o tratamento cirúrgico é o padrão ouro.
O tratamento não cirúrgico está sendo discutido apenas para a apendicite aguda não complicada.
RESUMO DOS DADOS DAS METANÁLISES
A metanálise do JAMA considerou 5 trabalhos, com um total de 404 pacientes, sendo 168 tratados com antibióticos e 236 com apendicectomia. No do PEDIATRICS, foram 10 estudos, com 766 crianças no total, sendo 413 tratadas inicialmente com a opção não cirúrgica.
Ambas as metanálises demonstram eficácia acima de 90% na resolução do quadro inicial de apendicite aguda no grupo tratado com antibióticos. Elas comparam tempo de internação e, também, o custo. Todavia, os resultados não são conclusivos, devido à heterogeneidade que já descrevemos.
Quando são analisados os seguimentos dessas crianças — novamente reforçamos que esse seguimento foi feito por períodos bastante variados nos diversos estudos —, ambos os trabalhos demonstram que, no grupo tratado sem cirurgia, há uma incidência maior de necessidade de reinternação por reaparecimento dos sintomas, sendo que entre 18% (PEDIATRICS) e 26% (JAMA) dessas crianças evoluíram com necessidade de apendicectomia no prazo de 1 ano após o quadro inicial.
Além disso, a revisão da JAMA encontra um dado interessante. Cerca de 50% dessas falhas de tratamento clínico ocorreram nos casos em que os pacientes apresentavam fecalito no apêndice no quadro inicial. Assim, os autores recomendam que, caso haja a presença do fecalito, o tratamento cirúrgico seja recomendado. Já o artigo do PEDIATRICS ressalta que o tratamento não operatório seria mais adequado no grupo de crianças com menos de 48 horas de evolução da dor abdominal e sem leucocitose importante no sangue periférico, pois a presença disso pode indicar um risco aumentado de complicação local da apendicite.
Outro dado interessante que ambas trazem é no que tange ao diagnóstico do quadro inicial. Todos os pacientes incluídos nos estudos tiveram seus diagnósticos feitos por um conjunto de anamnese, exame físico cuidadoso, ultrassonografia, exames laboratoriais e um segundo exame de imagem (tomografia ou ressonância). Tudo isso para melhor planejamento do tratamento a ser realizado. Como resultado, as metanálises afirmam que todas as crianças operadas tiveram o diagnóstico anatomopatológico de apendicite confirmados.
Devemos levar em consideração que, apesar da cirurgia de apendicectomia ser um procedimento relativamente simples, especialmente com as novas técnicas videolaparoscópicas, ela sempre envolve um procedimento anestésico, que na faixa etária pediátrica normalmente envolve anestesia geral, e tem inúmeras complicações possíveis, como por exemplo a infecção de ferida cirúrgica. O tratamento não cirúrgico parece ser seguro e evita a cirurgia em 75–80% dos casos de apendicite aguda não complicada, sem elevar a morbidade.
NOSSA CONCLUSÃO
Nossa impressão, ao analisarmos essas duas metanálises, é que existe uma tendência na literatura em recomendar um diagnóstico preciso da apendicite aguda não complicada, por meio de recursos clínicos, laboratoriais e radiológicos, para que cada vez mais possamos evitar procedimentos cirúrgicos e suas complicações, aumentando a segurança dos pacientes.
Lembramos que essa análise ainda não é conclusiva e que esses trabalhos devem servir especialmente como alertas para a comunidade médica, incentivando a elaboração de novos estudos para que possamos ter uma visão mais definitiva e segura sobre esse assunto.