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Disforia de gênero: a história de Gabriel

Mãe e médica, a dra. Simone Aquino conta a história de transição de seu filho Gabriel e o quanto o processo mexeu com suas convicções.

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Colegas, gostaria de fazer um relato pessoal e colocar um tema importante e atual em discussão. Tenho observado que, atualmente, muitas das discussões médicas acabam sendo direcionadas e associadas a questões políticas, principalmente devido ao momento em que vivemos. Com isso, muito se perde em termos de experiências e de sensibilidade profissional.

Digo isso porque há 5 meses, pela primeira vez, percebi em minha filha sinais de disforia de gênero.

E é sobre esse tema que pretendo discorrer hoje.

 

DIFERENTE DESDE O INÍCIO

Desde que me lembro, logo que começou a se vestir sozinha, minha filha sempre se recusou a usar roupas e acessórios femininos. Para que eu conseguisse que ela usasse vestidos, “grampinhos” e tiaras no cabelo, era sempre por imposição ou por meio de chantagem emocional.

Isso para mim era uma frustração, pois eu sempre tive o sonho de “ter uma menina”, enche-la de lacinhos e vestidinhos… e sempre verbalizei isso a ela. Mas ela nunca cedeu.

Em sua festa de aniversário de 7 anos, todas as coleguinhas foram vestidas de princesa – e ela escolheu a fantasia de Super-girl (sem nenhum acessório feminino). Na formatura, fizemos um book de fotos (que ficaram maravilhosas! Uma linda menina com cabelos longos…), mas ela me implorava para não compartilhar nas mídias sociais, porque odiava as imagens. Várias vezes a peguei tentando usar o vaso sanitário em pé, pois dizia que era sua preferência. Como a profissão do meu marido lhe permitia viajar, trazia a ela Barbies do mundo todo, mas ela brigava. O motivo? Queria sempre os bonecos Max Steel do irmão mais velho.

Aos 15 anos, iniciou sintomas de sudorese noturna, insônia, diarreias frequentes. Eu pensava, na época, em transtorno de ansiedade.

Por conta de uma cardiopatia congênita (corrigida aos 7 anos), teve seu desenvolvimento estaturo-ponderal comprometido, tendo hoje, aos 18 anos, 1.58 cm de altura. Desde essa época, era a “Maria das Dores” da casa; somatizava tendinites, artrites, miosites, porém os exames laboratoriais e de imagem sempre foram normais.

Além disso, ela sempre foi antissocial. Aos 15 anos, iniciou sintomas de sudorese noturna, insônia, diarreias frequentes. Eu pensava, na época, em transtorno de ansiedade. Por estudar em uma escola mais rígida, levei-a a uma colega psiquiatra infantil, que diagnosticou os sintomas como depressão, inclusive com a hipótese de que essa depressão já existia há muito tempo (talvez desde a segunda infância). Minha filha fez tratamento medicamentoso e psicoterápico por dois anos. Apresentou melhora, porém sempre mantinha os sintomas antissociais e a sintomatizações das “ites”. Apresentava aquelas paixonites de adolescência pelos meninos na escola, como toda adolescente.

 

MUDANÇAS

Algumas mudanças aconteceram em nossas vidas. Quando decidimos que ela viria estudar em São Paulo, pela primeira vez, senti que ela estava muito confortável com a perspectiva. Levou na mala todas as suas roupas mais… “clássicas” (pois era assim que eu as via), isso é, jeans, camisetas e tênis. Deixou em casa todas as sapatilhas e quaisquer roupas minimamente femininas que possuía.

Os garçons e quase todas as pessoas ao redor a identificavam como “o rapazinho”, o que me causou estranheza…mas também acendeu a “luz de mãe”.

Iniciou os estudos, vivendo em um pensionato feminino, e a mim parecia estar se sentindo melhor. Me pediu para cortar o cabelo (tão lindo, que ia até a cintura…), porque sempre tivera vontade de ter o cabelo curto, e não achei nenhum problema com isso (eu mesma já tive diversos cortes de cabelo, desde curtíssimos até na altura da cintura).

Em uma visita em um feriado, estávamos hospedados em um hotel, e ela surgiu com uma aparência totalmente masculina – o que pra mim foi uma mistura de choque e insatisfação. Os garçons e quase todas as pessoas ao redor a identificavam como “o rapazinho”, o que me causou estranheza…mas também acendeu a “luz de mãe”. Em um momento, meu marido, já chateado de vê-la ser confundida com menino, expressou verbalmente – e até agressivamente – que “ela era uma menina”. E então…ela prontamente respondeu que quem estava desconfortável com a situação éramos nós, e que parecia que a amávamos menos porque ela se parecia com um menino.

Resolvi confrontá-la. Minha filha, então, me confidenciou que nunca, desde pequenininha, se identificou como menina. Que todo seu sofrimento, suas depressões, suas dores, advinham de seu medo e desconforto com esses sentimentos. Que não se adaptava ao seu corpo. Sentia medo, em primeiro lugar, de ser rejeitada pelos pais e seus amigos. Havia ainda o constrangimento que sabia que iria causar (a nós seus pais) em nosso círculo de amizade. Chorou muito. Disse que sempre tentou, muito, ser a menina que eu sempre sonhei, mas que nunca conseguiu se adaptar às minhas expectativas, e que isso, pra ela, foi motivo de grande tristeza e dor. Que ia dormir à noite e pedia a Deus que acordasse um menino no dia seguinte.

 

UMA OPINIÃO DE MÃE – E MÉDICA

Eu, como mãe e médica, em nenhum momento tive a ideia de que minha filha possuísse alguma disforia de gênero. Tampouco os profissionais que sempre a acompanharam – e aqui não culpo nem julgo nenhum deles.

Sua hipótese diagnóstica foi de que minha filha é um transgênero homem. E que isso se manifestou já desde criança. Ou seja, a Vitória sempre foi o Gabriel.

Procurei ajuda com um colega psiquiatra, que me indicou um serviço de referência para disforia de gênero em crianças e adolescentes no HMUSP; porém, esse serviço só atende crianças de 3 a 17 anos. Liguei pra o consultório particular do colega, deixei mensagem em uma caixa postal e, pra minha surpresa, ele pessoalmente me ligou e marcou uma consulta com ela.

Sua hipótese diagnóstica, devido à toda a história, foi de que minha filha é um transgênero homem. E que isso se manifestou já desde criança. Ou seja, a Vitória sempre foi o Gabriel (nome escolhido por ele).

Passei pelo processo de luto (de perder minha filha que sempre idealizei). A imagem que eu via não era da minha menina. Passei por um processo de aceitação e de questionamentos. Por fim, iniciamos o processo de tratamento multidisciplinar, que provavelmente culminará na finalização de transição de gênero.

 

O PAPEL DO PROFISSIONAL DE SAÚDE NO DEBATE DE GÊNERO

Consigo enxergar, hoje, muita desinformação em nossa classe médica e na sociedade em geral, principalmente entre aqueles que estão em contato direto com nossas crianças (professores, educadores etc). Vejo colegas pediatras criticando a ideologia de gênero de maneira política e religiosa, colocando tudo “dentro do mesmo saco”, sem um olhar técnico e sensibilizado. Por outro lado, sei que se eu, ou qualquer outro colega, o tivesse diagnosticado precocemente, muito sofrimento seria poupado.

Se o tivéssemos diagnosticado mais cedo, segundo o protocolo, sua puberdade seria bloqueada (isso o faria ter um crescimento e desenvolvimento mais adequado, sendo hoje um homem mais alto, mais desenvolvido). Mas sei que este não será seu maior dilema; sei que muitos outros virão. Aos 16 anos, faria o processo de transição de gênero.

Me pergunto como mãe e médica: qual seriam os direitos do meu filho? Frequentar banheiro masculino? E sua segurança? Ter banheiros especiais pra transgênero?

Independentemente de não ter sido diagnosticado antes, vejo hoje meu filho feliz, sem somatizacões, sem a necessidade de tratamento antidepressivo, tentando se adaptar com segurança e lucidez às suas escolhas (se é que podemos chamar assim, pois acredito que ninguém tenha livre escolha de tal sina). Ainda não sei se sua condição se enquadra em uma patologia ou não, segundo a última resolução da OMS. Tudo ainda é muito novo pra mim. Mas tenho certeza que tenho que lutar pelo meu filho.

Vejo a necessidade de discutirmos, de nos educarmos, pois tratam-se aqui de questões muito concretas e não de debates de ideias. A discriminação e desvalorização produzem sofrimento e reduzem o aproveitamento de muitas crianças. E nós, profissionais de saúde, temos um papel fundamental, em que podemos promover concepções democráticas da vida ou reforçarmos preconceitos.

As crianças são objeto de práticas menos ou mais tolerantes e igualitárias, mas são também agentes ativos de sua reprodução. Me pergunto como mãe e médica: qual seriam os direitos do meu filho? Frequentar banheiro masculino? E sua segurança? Ter banheiros especiais pra transgênero?

Aprendi com Gabriel a ser uma pessoa melhor, aguçando minha capacidade de visualizar a igualdade e a tolerância. Agradeço a ele por mais essa lição de como praticar melhor a Medicina.

O PortalPed informa que o texto acima é um relato baseado em experiência e história pessoal da autora, e que não se trata de um material de atualização científica ou de orientação sobre o assunto.
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Dra. Simone Aquino

A dra. Simone S. Aquino é médica (CRM 007314/MA).
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