Infectologia

Caxumba — Apesar da Eficácia Vacinal, Por Que Ainda Temos Surtos?

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Por que motivo estamos vendo um número cada vez maior de casos de caxumba — inclusive em pessoas já vacinadas?

 

A vacina contra caxumba com 2 doses gera produção de anticorpos na quase totalidade dos pacientes. O que está acontecendo nos casos recentes de caxumba relatados em pessoas vacinadas? A vacina não está sendo efetiva? Houve mutação do vírus? Leia nosso resumo de artigo da semana e descubra a resposta.

 

INTRODUÇÃO

A caxumba é uma doença infecciosa antiga, com descrição documentada desde a época de Hipócrates, no século V a.C. Ela é causada pelos Paramyxovirus, vírus envelopados com genoma RNA que infectam principalmente crianças, causando geralmente infecções das vias aéreas superiores e inferiores.

Fazem parte da família dos Paramyxovirus:

  • o Parainfluenza (associados ao crupe e bronquiolite)
  • vírus sincicial respiratório,
  • vírus do sarampo e
  • vírus da caxumba.

 

A caxumba é uma infecção febril sistêmica das crianças e adultos jovens, com transmissão por meio do contato direto com gotículas respiratórias. O vírus pode disseminar-se amplamente por todo o corpo, afetando glândulas salivares, sistema nervoso central, testículos e pâncreas, causando uma grande variedade de apresentações clínicas.

Na era pré-vacina, a caxumba foi a principal causa de encefalite viral e surdez de início súbito nos Estados Unidos.

A inflamação com edema das glândulas salivares, especialmente as glândulas parótidas, é a manifestação clínica mais comum, sendo a característica da doença em 30% a 40% das pessoas infectadas, e em 60% a 70% daquelas com manifestação clínica. O envolvimento do sistema nervoso central (como meningite asséptica) é a manifestação extrassalivar mais frequente. Após a puberdade, pode causar inflamação com edema  doloroso dos testículos (orquite) nos homens ou dos ovários (ooforite) nas mulheres e levar à esterilidade. Podem ocorrer também pancreatite, encefalite e perda auditiva.

Antes do uso generalizado da vacina contra caxumba, a doença era muito comum na infância, com a quase totalidade da população mantendo evidência sorológica de infecção antes dos 15 anos.

 

VACINA CONTRA CAXUMBA

crianca com caxumba

Nos Estados Unidos, a vacina contra caxumba (cepa Jeryl Lynn) foi licenciada em 1967 e administrada como MMR (vacina trivalente contra measles, mumps and rubella — sarampo, caxumba e rubéola) desde 1971. Desde 1989, a vacina  MMR é administrada em 2 doses: a 1ª dose de 12 a 15 meses e a 2ª entre 4 a 6 anos. O aparecimento de anticorpo neutralizante é correlacionado ao desenvolvimento de proteção, mas o nível de anticorpo requerido ainda não foi estabelecido. Em contraste, atualmente não há comprovação da associação entre a magnitude (ou a natureza) das respostas imunes mediadas por células desencadeada pela vacina e esta proteção.

Desde que teve início o período de vacinação contra caxumba, a incidência da doença caiu mais de 99%

Num estudo de 6.283 crianças soronegativas após a vacinação, 97% delas desenvolveram anticorpo neutralizante. Taxas semelhantes de soroconversão são observadas quando se utiliza a MMR. A eficácia da vacina pode ser comprovada pela grande diminuição do número de casos, que passou de mais de 100.000 anualmente, na era pré-vacina, para algumas centenas na era pós vacina, representando decréscimo maior que 99% na incidência da doença. Apesar da alta taxa de soroconversão, a partir de 2006, houve ressurgimento de casos de caxumba nos Estados Unidos e demais países onde a doença já estava sob controle. Esses surtos ocorreram predominantemente em campus universidades e Faculdades, locais onde a exposição e transmissão são altas.

 

RESPOSTA IMUNE APÓS VACINAÇÃO CONTRA CAXUMBA

glandula parotida inchada na caxumbaApós a vacinação, há uma proliferação de linfócitos B antígeno-específicos e produção de anticorpos específicos contra o vírus de caxumba. Na resposta imune primária, inicialmente há produção de IgM, seguida da produção de IgG de baixa avidez, enquanto que na resposta secundária encontramos IgG de alta avidez e o desaparecimento da IgM. O número de linfócitos e os títulos de anticorpos são baixos contra a caxumba, valores muito inferiores às respostas contra antígenos administrados simultaneamente (sarampo e rubéola). Além disto, há um declínio maior dos títulos dos anticorpos contra o vírus de caxumba quando comparados aos títulos contra o sarampo ou a rubéola.

A imunidade celular não foi tão bem estudada quanto a resposta humoral. Após vacinação, ocorre estimulação das células T de memória e presume-se que elas contribuam para a imunidade, embora provavelmente a participação de anticorpos seja necessária para a proteção total contra a caxumba. Dados sugerem que as células T específicas para caxumba são detectáveis por muito tempo após a vacinação e podem, na verdade, ter maior durabilidade do que a resposta humoral.

 

RESSURGIMENTO DA CAXUMBA

Apesar de controvérsias sobre os fatores que contribuíram para o reaparecimento de surtos de caxumba, alguns fatores provavelmente não participaram da gênese deste problema:

  • FALHA PRIMÁRIA DA VACINAJustificativa: dados de inúmeros ensaios clínicos mostram seroconversão em mais de 95% dos vacinados após uma dose e quase 100% após 2 doses.
  • FALTA DE VACINAÇÃO OU RECEBIMENTO DE APENAS 1 DAS 2 DOSES RECOMENDADAS DE MMR – Justificativa: quase todos os casos ocorreram em pessoas com história de 2 doses de vacina.
  • DIFERENÇAS ANTIGÊNICAS ENTRE A CEPA DA VACINA DE 1967 E AS CEPAS CIRCULANTES CONTEMPORÂNEASJustificativa: soros coletados de indivíduos logo após a vacinação demonstraram eficácia em neutralizar uma vasta gama de cepas de vírus geneticamente diferentes.

Atualmente, o fator mais aceito pelo ressurgimento de surtos de caxumba é a diminuição da imunidade induzida pela vacina com o tempo. Vários estudos demonstraram que há nível declinante de anticorpos específicos e diminuição da efetividade da vacina, aumentado as chances de contrair a doença.

Atualmente, o fator mais aceito pelo ressurgimento de surtos de caxumba é a diminuição da imunidade induzida pela vacina com o tempo.

Trabalhos mostraram que pacientes vacinados com 2 doses da vacina MMR apresentavam respostas imunes diferentes para caxumba quando comparadas àquelas do sarampo e da rubéola, o que sugere alguma propriedade intrínseca da vacina contra caxumba que limita sua eficácia a longo prazo. Após vacinação com MMR, diferentemente do que ocorre contra o sarampo e a rubéola, os níveis de células B de memória específica são menores contra a caxumba; além disto, os anticorpos produzidos têm menor avidez. Após a vacinação, numa fase precoce, o teste de avidez de anticorpos contra a caxumba revelou que tanto IgM como IgG tinham alta avidez, fato este que indica que a vacinação foi bem sucedida, mas insuficiente para, a longo prazo, prevenir infecções subsequentes. Trabalhos demonstraram que a sequência de aminoácidos das regiões-chave do principal alvo imunológico da cepa Jeryl Lynn da vacina contra caxumba – a proteína hemaglutinina-neuraminidase – não é otimizada para facilitar a interação entre células B e células CD4 T-helper, passo necessário para a memória imunológica potente.

surto de caxumba nos estados unidos
Nos Estados Unidos, 2014 foi um ano com número recorde de casos de caxumba – inclusive em pessoas já vacinadas. Imagem: USA TODAY

Estudos para avaliação dos tipos células T induzidas pela vacina contra caxumba e suas funções são necessários para, talvez, tentar preencher lacunas sobre a durabilidade da imunidade celular induzida. Seria a diminuição dos títulos de anticorpos neutralizantes ao longo do tempo um resultado indireto de células T insuficientes ou inadequadas?

 

CONSIDERAÇÕES ATUAIS E FUTURO

O problema da imunidade decrescente poderia, em tese, ser solucionado com uma dose adicional da vacina contra a caxumba; porém, tal estratégia não foi confirmada em estudo com 685 jovens adultos submetidos à administração de uma dose adicional de vacina durante a adolescência. Nesse estudo, após terceira dose da vacina MMR, os títulos de anticorpos específicos contra o vírus da caxumba aumentaram significativamente, mas esse aumento foi transitório, retornando aos títulos iniciais dentro de um ano. O estudo não demonstrou um benefício quantitativo a longo prazo em termos de níveis de anticorpos. Porém, note-se que não foram examinados efeitos qualitativos, como a avidez do anticorpo ou a memória de células B ou outros marcadores de imunidade mediada por células. Apesar de os autores terem concluído que não há dados convincentes para apoiar uma 3ª dose de vacina MMR, o aumento transitório que ocorre após a revacinação pode ser de importância e utilidade clínica, pelo menos a curto prazo. Trabalhos adicionais sobre a eficácia do uso da vacina como medida de controle de surto são necessários, bem como estudos sobre o potencial de uma terceira dose de MMR, para melhorar o desempenho funcional da vacina a longo prazo.

Questões a serem elucidadas

  • Por que, após a vacinação MMR, os níveis de células secretoras de anticorpos específicos contra o vírus da caxumba são significativamente inferiores aos níveis induzidos por infecção natural?
  • Por que a vacina MMR resulta em menor desenvolvimento de células B de memória específicas contra o da caxumba do que contra o sarampo e a rubéola?
  • Existem diferenças no local, na quantidade ou qualidade da apresentação de antígenos da caxumba, sarampo e rubéola?
  • Por que a avidez dos anticorpos contra a caxumba induzidos pela vacina MMR é muito menor do que a avidez dos anticorpos contra sarampo e rubéola?
  • Os números de linfócitos específicos da caxumba diminuem a uma taxa mais rápida do que os linfócitos com outras especificidades antigênicas (ou seja, sarampo ou rubéola) ou é um caso de ter apenas poucos para começar?
  • Quais são os papéis exatos das respostas das células T-CD4 e CD8 na proteção de longo prazo contra a reinfecção da caxumba?

 

Apesar do problema da imunidade a longo prazo contra a caxumba, é importante enfatizar que é muito melhor vacinar do que não vacinar. Dados de surtos recentes de caxumba mostram que a eficácia de uma dose única da vacina Jeryl Lynn contra caxumba é de aprox. 80%, e a de 2 doses é ~88%. Além disso, casos de caxumba em pessoas vacinadas têm sintomatologia mais leve em comparação com os casos em pessoas não vacinadas.

O problema não está resolvido. É mister realizar estudos para criação de nova vacina contra a caxumba, uma que resolva o problema da longevidade da imunidade.

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Dr. Breno Montenegro Nery

Médico pediatra especializado em medicina intensiva pediátrica, com graduação pela Universidade Federal de Pernambuco e especialização pela Unicamp.

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