História da MedicinaInfectologia

Higiene de mãos: efetividade no combate à transmissão de doenças

Quão eficiente é a lavagem das mãos no combate e na prevenção a doenças? Qual a porcentagem de médicos que seguem as recomendações? E o que é melhor, utilizar água e sabão ou soluções com álcool?

Compartilhe conhecimento:

mito caixa de pandora

“Mas, roída pela curiosidade, um dia Pandora decidiu levantar só um bocadinho da tampa da caixa para ver o que lá se escondia. De imediato dela escaparam todos os males que até aí os homens não conheciam: a doença, a guerra, a velhice, a mentira, os roubos, o ódio, o ciúme…”

O Mito de Pandora. Hesíodo in Trabalhos e Dias

 

Assim os antigos gregos explicaram o porquê das mazelas humanas existirem e nos amedrontarem tanto. Dentre essas mazelas — e não por acaso em primeiro lugar — estavam as doenças. Da temida Peste Negra, que assolou a Europa no século XIV, aos surtos (de doença) nos dias atuais, como o de Mielite Flácida Aguda, as doenças sempre assombraram a humanidade e, de certo modo, representaram uma ameaça à nossa sobrevivência como espécie.

Por muitos séculos, os principais suspeitos de causarem doenças foram elementos espúrios, como miasmas, vapores impuros, conjunturas perigosas de planetas, maus espíritos ou até mesmo a imoralidade. Como chegamos ao conhecimento que possuímos hoje sobre o que, de fato, está relacionado à disseminação de doenças?

Veja também

Surto de Mielite Flácida Aguda nos EUA — o que Sabemos?

 

Dos miasmas à teoria dos germes

Ignaz Semmelweis (1818–1865), conhecido como “o pai do controle de infecções”, foi um médico obstetra húngaro radicado em Viena que, em 1847, ficou responsável pela seção de Maternidade de um hospital-escola da capital austríaca, num programa de atendimento assistencialista de dois anos. Durante este período, observou que as mulheres atendidas por médicos e estudantes de Medicina tinham uma mortalidade puerperal muito maior (13–18%) por uma condição chamada febre puerperal ou febre do parto do que aquelas atendidas por parteiras ou estagiárias de parteiras (2%).

Essa análise levou Semmelweis a considerar algumas hipóteses. Ele concluiu que as altas taxas de infecção em puérperas atendidas por médicos e estudantes de medicina estavam associadas com a manipulação de cadáveres durante as autópsias antes de atenderem as gestantes — tarefa que não era realizada pelas parteiras. O obstetra, então, associou a exposição ao material cadavérico ao aumento do risco de febre do parto e conduziu um estudo no qual a intervenção era a lavagem de mãos.

Semmelweis, em selo postal alemão (em circulação de 1956 a 1958). Na lateral direita, o escrito “Ajudante da Humanidade”.

Dessa maneira, Semmelweis iniciou uma política mandatória de lavagem de mãos para médicos e alunos. Num ensaio controlado usando solução de hipoclorito de cálcio, a taxa de mortalidade caiu para 2% — a mesma das parteiras. Depois, ele começou a lavar os instrumentos médicos e essa taxa caiu para 1%. No entanto, um colega acadêmico da mesma instituição, adepto da “velha guarda”, não aceitou suas conclusões e, baseado na então popular teoria dos miasmas, atribui os achados de Semmelweis a um recém-implementado sistema de ventilação do hospital. Apesar de suas importantes observações, Semmelweis não conseguiu sua efetivação no hospital e teve sua teoria desmoralizada pelos colegas. Voltou para Budapeste, publicou um livro após 14 anos – não muito bem recebido pela comunidade médica da época – e, num trágico desfecho, morreu aos 47 anos, internado em um hospício.

Ser um profissional médico era considerado uma “benção divina”, portanto era irracional pensar que médicos pudessem causar doenças.

Nos dias atuais, em que se prega a adoção de medidas baseadas em evidências, ignorar os achados de Semmelweis parece um absurdo. No entanto, ser um profissional médico era considerado uma “benção divina”, portanto era irracional pensar que médicos pudessem causar doenças, e Semmelweis estava justamente dizendo que os médicos eram causa de mortes. Egos podem ser inversamente proporcionais às evidências.

Egos podem ser inversamente proporcionais às evidências.

Embora Semmelweis tenha sido o primeiro profissional da saúde a demonstrar experimentalmente que a lavagem de mãos poderia prevenir infecções, foi apenas aproximadamente duas décadas depois de sua morte que seu trabalho foi revisado e recebeu o merecido crédito.

Somente após Pasteur, Koch e Lister fornecerem mais evidências sobre a teoria dos germes é que as técnicas de higiene e de lavagem de mãos ganharam mais força científica.1

 

A importância da lavagem de mãos

De acordo com a OMS, menos de 40% dos médicos seguem corretamente as orientações sobre lavagem das mãos.

Ao redor do mundo, a sepse é a causa de morte de cerca de 1.400 pessoas por dia. Muitas dessas pessoas desenvolvem sepse após adquirirem infecções enquanto internadas em um hospital. Infecções nosocomiais são uma causa comum de complicações em pacientes hospitalizados, com cerca de 5–10% dos pacientes em cuidados agudos adquirindo pelo menos uma infecção dentro do ambiente hospitalar. Nos EUA, estima-se que resultem em US$ 4,5 a 5,7 bilhões em custos adicionais anualmente.1

Apesar de se acreditar que a higiene de mãos é a atividade mais importante na prevenção das infecções, um estudo de 2009 da Organização Mundial de Saúde (OMS) mostrou que a conformidade média dos trabalhadores de saúde com ela era de apenas 38,7%.

Em 2005, a Aliança Mundial para Segurança do Paciente da OMS lançou uma campanha (WHO-5) para promover a higienização de mãos, baseada numa estratégia multimodal que consiste de cinco componentes (mais recentemente reavaliadas e adicionadas de estratégias que incluem teoria comportamental).2 :

  • mudança do sistema,
  • treinamento e educação,
  • observação e feedback,
  • lembretes no hospital e
  • clima de segurança hospitalar.

Em 2008, a Anvisa e a Organização Pan-Americana da Saúde no Brasil (OPAS/OMS) traduziram para a língua portuguesa e disponibilizaram em seus portais o Guia para Implantação da Estratégia Multimodal da OMS para a Melhoria da Higienização de Mãos. Mais recentemente, em 2015, foi lançado pela Anvisa o Manual de Referência Técnica para a Higiene das Mãos, que contém informações detalhadas sobre o procedimento a ser empregado por profissionais e instituições de saúde.3

Nesse manual, a OMS define os cinco momentos para a higiene das mãos, apresentados na tabela abaixo.

Tabela 1 — Correspondência entre as indicações e as recomendações da OMS

Os Cinco Momentos Recomendação das Diretrizes da OMS sobre a Higiene das Mãos em Serviços de Saúde, 2009
1. Antes de tocar o paciente a) antes e após contato com o paciente (IB)
2. Antes de realizar procedimento limpo/antisséptico b) antes de manusear um dispositivo invasivo, independente do uso ou não de luvas (IB)

d) ao se mover de um sítio anatômico contaminado para outro durante o atendimento do mesmo paciente (IB)

3. Após risco de exposição a fluídos corporais c) após contato com fluídos corporais ou excretas, membranas mucosas, pele não íntegra ou curativo (IA)

d) ao se mover de um sítio anatômico contaminado para outro durante o atendimento do mesmo paciente (IB)

f) após remover luvas esterilizadas (II) ou não esterilizadas (IB)

4. Após tocar o paciente a) antes e após contato com o paciente (IB)

f) após remover luvas esterilizadas (II) ou não esterilizadas (IB)

5. Após tocar as superfícies próximas ao paciente e) após contato com superfícies e objetos inanimados (incluindo equipamentos para a saúde) nas imediações do paciente (IB)

f) após remover luvas esterilizadas (II) ou não esterilizadas (IB)

Fonte — Manual de Referência Técnica para a Higiene das Mãos, 20153

Graficamente, esses momentos podem ser representados de acordo com a Figura 1, em geral bastante conhecida pelos profissionais de saúde e espalhada pelos locais de atendimento.

Figura 1 — Os cinco momentos da higiene de mãos. Fonte — Manual de Referência Técnica para a Higiene das Mãos, 20153

 

Lavagem de mãos ou uso de agentes antissépticos?

A literatura é um tanto quanto controversa nesse ponto, com alguns artigos pendendo para os agentes sanitizantes com álcool, outros para a lavagem de mãos com água e sabão – e outros ainda que não encontraram diferenças entre os métodos. Uma grande revisão da Cochrane não apenas não encontrou diferenças entre eles, mas falhou em estabelecer se intervenções multimodais para higiene de mãos são mais eficazes que as estratégias mais simples. Concluiu, entretanto, que os níveis de evidência dos trabalhos disponíveis são fracos ou muito fracos para estabelecer inferências seguras.4

medicos e enfermeiras lavando as maos

O sabonete (líquido ou espuma) e as preparações alcoólicas para as mãos não devem ser utilizadas concomitantemente (recomendação II).3

A maneira mais eficaz de garantir uma ótima higiene das mãos é utilizar a preparação alcoólica para as mãos. De acordo com as Diretrizes da OMS sobre Higiene das Mãos em Serviços de Saúde, quando a preparação alcoólica para as mãos está disponível, deve ser adotada como produto de escolha para a antissepsia rotineira das mãos (recomendação IB). As preparações alcoólicas para as mãos apresentam as seguintes vantagens imediatas:

  • eliminação da maioria dos micro-organismos (incluindo vírus);
  • curto período de tempo para higienizar as mãos (20 a 30 segundos);
  • disponibilidade do produto no ponto de assistência — isto é, nos locais exatos onde é indicada a higiene das mãos;
  • boa tolerabilidade da pele;
  • não há necessidade de qualquer infraestrutura especial (rede de fornecimento de água limpa, lavatório, sabonete e toalha). 

O Centers for Disease Control and Prevention (CDC) dos EUA, em suas recomendações sobre o assunto, afirma que a lavagem de mãos com água e sabão é a melhor forma de reduzir o número de micro-organismos nelas na maioria das situações. No entanto, se água e sabão não estiverem disponíveis, devemos usar soluções que contenham álcool em concentração de ao menos 60%. Reitera que, embora agentes antissépticos alcoólicos possam inativar muitos micróbios caso sejam usados corretamente, as pessoas podem não usar quantidade suficiente ou limpá-los das mãos antes que eles sequem, o que reduz seu poder desinfetante. Além disso, água e sabão são mais efetivos que agentes sanitizantes na remoção de certos micróbios, como Cryptosporidium, norovirus e Clostridium difficile.5

 

As técnicas para higiene de mãos

Em qualquer situação, quanto mais tempo permanecermos friccionando nossas mãos com o agente antisséptico (preparação alcoólica ou sabão), melhores serão os resultados. O CDC recomenda que o processo de lavagem de mãos ocorra por pelo menos 20 segundos —mas esse tempo deve ser maior quanto maior o cuidado com pessoas em situação de risco, como no caso dos profissionais de saúde.

O manual de 2015 da Anvisa, no entanto, é mais específico e traz as seguintes recomendações para os diferentes tipos de agentes de limpeza, que vemos das Figuras 2 e 3 a seguir.

Figura 2 — Técnica para Higiene de Mãos Usando uma Preparação Alcoólica. Fonte — Manual de Referência Técnica para a Higiene das Mãos, 20153

 

Figura 3 — Técnica para Higiene de Mãos Usando uma Água e Sabão. Fonte — Manual de Referência Técnica para a Higiene das Mãos, 20153

 

Higiene de mãos pode minimizar risco de infecções fora do hospital?

Um trabalho recente publicado por um grupo espanhol estudou a efetividade de um programa educacional e de higiene de mãos, em creches locais e em lares, na redução da incidência de infecções respiratórias e na prescrição de antibióticos em crianças.

Esse estudo envolveu 911 crianças de 0 a 3 anos de idade de 24 diferentes creches durante 8 meses. Elas foram divididas em dois grupos de intervenção, um em que a higiene era feita com água e sabão e outro com algum agente antisséptico (como o álcool gel), além de um grupo controle que seguia os procedimentos normais de higiene de mãos.

criancas maos sujas

Ao final do estudo, 5.211 episódios de infeções respiratórias foram registrados. As crianças do grupo que usou agentes antissépticos tiveram menos risco de infecções respiratórias e de prescrição de antibióticos que o grupo controle, enquanto que as do grupo da água e sabão tiveram maior probabilidade de apresentar infeções respiratórias e prescrição de antibióticos que as do grupo do agente antisséptico. As crianças perderam 5.186 dias de aulas por contra dessas infecções respiratórias, sendo que a porcentagem de dias de ausência foi significativamente menor no grupo que usou um agente antisséptico para a higiene das mãos do que no grupo controle.6

É incontestável a evidência de que a higiene de mãos é uma das atividades com maior impacto na redução de transmissão de agentes infecciosos, tanto nos ambientes intra quanto nos extra-hospitalares. É, inclusive, a única forma eficaz para evitar o contágio de micro-organismos causadores de doenças que ainda não possuem terapêutica ou vacinas específicas. Como profissionais promotores da saúde (e ao contrários dos colegas contemporâneos de Semmelweis), precisamos compreender que nós também podemos ser vetores de doenças e que podemos melhorar nossa conduta por meio de medidas simples. Uma avaliação autocrítica é fundamental para mudança nesse paradigma em nossos ambientes de trabalho. Fora dele, a higienização de mãos desde idades precoces parece ser bastante promissora, e o trabalho de profissionais de saúde e dos pais em tornar isso um hábito é fundamental.

 

 

Referências científicas

  1. BEST M, NEUHAUSER D. Ignaz Semmelweis and the birth of infection control. BMJ Quality & Safety 2004;13:233-234
  2. LUANGASANATIP N et al. Comparative efficacy of interventions to promote hand hygiene in hospital: systematic review and network meta-analysis. BMJ 2015;351:h37298. DOI: https://doi.org/10.1136/bmj.h3728
  3. AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA. Manual de Referência Técnica para a Higiene das Mãos, 2015. Disponível em: https://www20.anvisa.gov.br/segurancadopaciente/index.php/publicacoes/item/manual-de-referencia-tecnica-para-a-higiene-das-maos
  4. GOULD DJ et al. Interventions to improve hand hygiene compliance in patient care. Cochrane Systematic Review, 2017. DOI: 10.1002/14651858.CD005186.pub4
  5. CENTERS FOR DISEASE CONTROL AND PREVENTION. Handwashing: Clean Hands Save Lives. When & How to Use Hand Sanitizer. Acesso em 04 de fevereiro de 2019. Disponível em: https://www.cdc.gov/handwashing/show-me-the-science-hand-sanitizer.html
  6. AZOR-MARTINEZ E, YUI-HIFUME R, MUÑOZ-VICO FJ, et al. Effectiveness of a Hand Hygiene Program at Child Care Centers: A Cluster Randomized Trial. Pediatrics. 2018;142(5): e20181245
Mostrar mais

Antonio Junior

Médico pediatra especializado em medicina intensiva pediátrica, com graduação e especialização pela Unicamp.
Botão Voltar ao topo