Miíase, Berne ou Bicheira: tipos, diagnósticos e tratamentos
Entenda como ocorre o ciclo de vida das larvas, quais são as diferenças entre os tipos de miíase e como tratá-los.
Miíase: definição
A miíase é uma infestação da pele ocasionada pelo desenvolvimento de larvas de uma grande variedade de espécies de moscas pertencentes à ordem Diptera, classe Insecta. Neste grupo, existem aproximadamente 150 mil espécies (cerca de 8,7 mil presentes no Brasil), mas somente algumas delas já foram descritas como causa de miíase. Essas larvas invadem a pele ou orifícios naturais, como nariz, ouvido, olhos, entre outros, por onde se alimentam de tecido subcutâneo a fim de completar o ciclo de vida.
Neste texto, focaremos nas espécies de maior ocorrência no Brasil, mas lembramos que existem inúmeras espécies que podem ocasionar miíase, com ciclo, fisiopatologia e manifestações que podem ser distintas.
Epidemiologia da miíase
O aumento das viagens internacionais para negócio e turismo, principalmente para países com baixos indicadores de desenvolvimento socioeconômico e humano, aumentou a incidência de algumas doenças do viajante, como diarreia aguda, doença febril sistêmica e doença de pele. As doenças de pele são responsáveis por 8-12% das patologias dos viajantes.
A miíase está entre as cinco doenças de pele mais frequentes dos viajantes, sendo responsável por 7,3 -11% dos casos [2].
A miíase pode ocorrer em quase todos os locais do mundo, mas sua incidência é maior nos trópicos e subtrópicos da África e das Américas.
Não há prevalência maior da doença em um sexo, uma raça ou idade específica [3].
Etiologia
Dentre as moscas mais comumente identificadas como relacionadas à miíase, a Dermatobia hominis é endêmica no México tropical, América do Sul e América Central, enquanto a Cordylobia anthropophaga é endêmica na África subsaariana [3].
Outras espécies também descritas como responsáveis pela miíase no ser humano são:
- Cochliomyia hominivorax (América),
- Chrysomyia bezziana (África, Austrália, Ásia),
- Hipoderma bovis (gado infestado),
- Gasterophilus intestinalis (cavalos infestados) e
- Oestrus ovis (mosca dos ovinos) [2,3].
Fisiopatologia da miíase
A fisiopatologia da miíase depende da espécie da mosca.
Pode ocorrer infestação por depósito dos ovos das moscas no corpo de insetos hematófagos, que passam a servir de vetores para disseminar a infestação; depósito de ovos diretamente na pele íntegra, em orifícios dos folículos pilosos ou em lesão cutânea preexistente; ou, ainda, as fêmeas podem colocar seus ovos no solo ou em roupas úmidas penduradas para secar, posteriormente infectando o ser humano.
O calor da pele induz os ovos a eclodir, liberando larvas que invadem o tecido subcutâneo e se alimentam dele. Em 5-10 semanas, se o ciclo não for interrompido, as larvas saem do hospedeiro, caem no chão e formam moscas em 2-4 semanas [2,3,4].
As larvas se alimentam de tecido humano vivo ou necrosado, a depender da espécie de mosca.
Classificação
A miíase pode ser classificada em primária ou secundária.
Primária ou furunculóide (berne)
Na qual larvas da mosca Dermatobia hominis (mosca berneira) se alimentam de tecido vivo. Geralmente ocorrem uma ou mais lesões nodulares com 1 a 3 cm, que apresentam um orifício central por onde a larva sai para respirar. Por ele pode sair secreção serosa. O orifício é frequentemente doloroso e pode assemelhar-se a um furúnculo [3,4,5, Protocolo Saúde Direta].
Secundária (bicheira)
Estes casos estão relacionados às larvas da Cochliomya hominivorax (mosca varejeira), Callitroga macelaria ou espécies do gênero Lucilia, as quais se alimentam de tecidos saudáveis, ou mais raramente de tecidos necrosados da pele ou de mucosas. A miíase secundária pode ser cutânea ou cavitária. Na forma cutânea, as larvas são vistas movimentando-se na superfície da ulceração na pele, em meio à secreção purulenta. Na forma cavitária, as larvas são encontradas em cavidades e orifícios naturais infectados [3,4, 5, Protocolo Saúde Direta].
Quadro Clínico da Miíase
Pode haver história de viagem para um país tropical, ambientes de campo com muitas moscas ou a existência de uma ferida anterior no local acometido. O tempo médio entre a exposição e o diagnóstico é de aproximadamente um mês e meio [3]. As lesões podem ser dolorosas e/ou pruriginosas. Os pacientes geralmente têm a sensação de que algo se move sob a pele [3]. Pode ocorrer infecção secundária com febre e adenite satélite [1,2,3].
Podemos encontrar algumas manifestações clínicas da doença:
MIÍASE FURUNCULAR
Pápula eritematosa pruriginosa que inicia seu desenvolvimento em 24 horas após sua penetração, aumentando até 1 a 3 cm de diâmetro e quase 1 cm de altura, com ponto central com fluido serossanguinolento; essa lesão pode se tornar purulenta e com crosta [1,2,3]. É comum o paciente perceber o movimento das larvas, que podem se projetar através da abertura central. As lesões podem ser dolorosas. Pode ocorrer reação inflamatória peri-lesional com linfangite e linfadenopatia regional concomitante [3].
MIÍASE DA FERIDA
Nesses casos, as larvas são depositadas diretamente em uma ferida supurada ou em tecido em decomposição. Os vermes podem ser visíveis na superfície, dentro e/ou ao redor da ferida, ou podem se alojar abaixo da superfície [2,3].
MIÍASE MIGRATÓRIA OU CUTÂNEA RASTEIRA
Geralmente ocorre em pessoas expostas a bovinos e equinos. Forma-se uma lina avermelhada tortuosa com uma vesícula terminal, muito semelhante à larva migrans cutânea [2,3].
MIÍASE CAVITÁRIA
Pode acometer os olhos, o nariz, intestino, a boca, o ouvido, entre outros locais. Algumas espécies de mosca têm maior predileção por locais específicos, como a Oestrus ovis, que causa oftalmomiíase [3].
Diagnóstico da miíase
O diagnóstico da miíase é clínico, feito pela identificação das larvas. A classificação da espécie é difícil. Apesar de não necessário, o hemograma pode demonstrar leucocitose e eosinofilia. Casos específicos, com acometimento cerebral, facial ou orbitário, podem exigir exames de imagem (ultrassonografia, tomografia computadorizada ou ressonância magnética) [3].
Diagnóstico Diferencial
Várias doenças podem mimetizar a miíase, mas a evolução da lesão (aparecimento das larvas) ou a falha do tratamento para outras patologias sugerem fortemente o diagnóstico. Entre os diagnósticos diferenciais destacam-se:
- abscesso,
- furúnculo,
- celulite,
- estrófulo,
- larva migrans cutânea,
- leishmaniose cutânea e
- tunguíase.
Tratamento da miíase
Miíase furunculóide e das feridas
O objetivo do tratamento para este tipo de miíase é a remoção completa da larva da pele, com a prevenção e o controle da infecção secundária. Infecção secundária pode ocorrer se a larva for rompida ou morta dentro da cavidade, sem remoção [2].
A terapia consiste em três técnicas gerais:
- Aplicação de uma substância tóxica à larva e ao óvulo;
- Hipóxia localizada, para forçar a saída da larva;
- Remoção mecânica ou cirúrgica das larvas.
A depender da espécie, as larvas podem migrar mais profundamente, dificultando o tratamento. A expressão pode romper a larva [2].
A obstrução do orifício diminui a oxigenação da larva, obrigando-a a emergir à superfície, ajudando na extração subsequente com pinça [1,2,3,4]. Para tanto, podem ser utilizados materiais como parafina líquida, cera de abelha, esmalte, fita adesiva, bacon ou vaselina. A oclusão deve ser realizada por um período de 3-24h para ter o efeito desejado [3]. Note-se que as larva imaturas geralmente relutam em emergir. O risco da tentativa de oclusão é que o organismo pode morrer por asfixia, sem emergir; tais larvas mortas podem desencadear uma resposta inflamatória, com a formação de granuloma de corpo estranho e, eventualmente, progressão para calcificação [2]. A injeção de lidocaína a 1% (2 ml por nódulo) às vezes é usada para paralisar a larva, facilitando a extração [2]. O nitrogênio líquido pode ser usado antes da extração, ocasionando endurecimento da larva e ajudando em sua remoção[2].
Em alguns casos, pode ser necessária a excisão cirúrgica, com anestesia local com lidocaína, seguida de fechamento primário da ferida [2,3].
Em alguns casos pode ser necessário o desbridamento do tecido necrótico ao redor da lesão [2,3].
A ivermectina pode matar a larva dentro da lesão, com conseqüente reação inflamatória.
Miíase migratória
O tratamento nesses casos consiste na identificação da posição da larvas e em sua remoção com uma agulha [2]. As larvas com localização mais profunda são mais facilmente removidas através de uma incisão. A excisão cirúrgica é frequentemente necessária na miíase migratória. Há relatos de larvas que migram profundamente no tecido, tornando a extração impossível; nesses casos, há relato do uso de albendazol oral ou ivermectina previamente, o que facilitou a remoção cirúrgica [2].
Miíase cavitária
Nesses casos, geralmente é necessário acompanhamento em conjunto com especialista para a remoção das larvas. A ivermectina oral tem se mostrado especialmente útil nos casos de envolvimento oral, orbital e nasal como adjuvante para o tratamento [3].
Tratamento oral
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