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Resfriado comum, um diagnóstico esquecido

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Às vezes, o problema do paciente é mais simples do que parece. Aprenda a diagnosticar diferencialmente o resfriado comum e quais são os métodos cientificamente corretos de combatê-lo.

Na nossa conversa de hoje, discutiremos a condição clínica mais frequente da pediatria — e também a mais menosprezada. Em um mundo repleto de tecnologia e de doenças complexas, em que nós, médicos, temos sempre de nos esforçar para realizar um diagnóstico, pode parecer estranho pensar de maneira simples. Mas, muitas vezes, não há como escapar: a resposta aos sintomas de nossos pacientes é o simples resfriado comum!

 

O RESFRIADO COMUM NA PEDIATRIA

A gripe comum é a doença aguda mais frequente do mundo. [1]

O resfriado comum é uma doença viral aguda do trato respiratório superior, autolimitada, que se manifesta comumente com:

  • espirros,
  • congestão nasal,
  • coriza,
  • dor de garganta,
  • tosse,
  • febre baixa (especialmente nas crianças pequenas),
  • dor de cabeça e
  • mal estar.

crianca com gripeApesar de sua benignidade, é responsável por um impacto social bastante significativo, levando a muitos dias de trabalho e de escola perdidos, prejuízos do sono no paciente e familiares e diversas procuras a serviços de saúde. Além disso, por inúmeros motivos — dentre eles o desconhecimento da literatura atual, as crenças pessoais e os hábitos de familiares e dos próprios cuidadores —, ocorre uma medicalização desnecessária, especialmente das crianças, e com isso temos um aumento no número de efeitos colaterais (inclusive graves intoxicações) e aumento dos gastos com saúde, devido a tratamentos de baixa ou nenhuma efetividade.

Por conta disso, resolvemos discorrer brevemente sobre o diagnóstico do resfriado comum, seus diagnósticos diferenciais (assim como o de suas complicações) e fazer uma breve revisão sobre os tratamentos que normalmente são usados pelo mundo afora.

 

OS VÍRUS DO RESFRIADO

rinovirus humano
Rinovírus humano

O resfriado comum pode ser causado por uma infinidade de vírus. Entretanto, 50% dos casos são correlacionados aos mais de 100 sorotipos de rinovírus. Os demais 50%, normalmente, são decorrentes de infecção por vírus sincicial respiratório (VSR), Influenza, Parainfluenza, Adenovírus e Enterovírus não pólio. [1]

O resfriado comum pode ocorrer em qualquer época do ano, mas apresenta considerável sazonalidade, sendo mais frequente nos meses de outono e inverno.

A transmissão desses vírus causadores do resfriado comum (diga-se de passagem, são também causadores de diversas outras síndromes clínicas como crupe, laringite e bronquiolite) ocorre por 3 mecanismos diferentes:

  • contato direto por mãos contaminadas;
  • inalação de gotículas suspensas, especialmente após tosse; e
  • deposição de gotículas após espirros diretamente nas mucosas.

Sendo assim, já adiantamos que aí estão os principais pontos a nos atentarmos para orientar a prevenção aos nossos clientes.

 

QUADRO CLÍNICO DO RESFRIADO COMUM

A duração dos sintomas varia de acordo com o estado imunológico do paciente, com a idade (quanto menor a criança, maior tende a ser o tempo de duração) e com o agente envolvido, mas essa duração fica entre 5 a 14 dias. Os pré-escolares são a faixa mais acometida, tendo em média 6 a 8 episódios por ano. [1]

Os sintomas mais comuns, em qualquer faixa etária, são: congestão nasal, coriza e tosse. Nos pré-escolares, é comum o aparecimento de febre baixa, diminuição do apetite e dificuldade para se alimentar e dormir.

O diagnóstico é eminentemente clínico, baseado em anamnese e exame físico. Os testes diagnósticos são de pouca utilidade, devendo ser utilizados normalmente para diagnóstico diferencial, como no caso de radiografia de tórax na suspeita de pneumonia.

Num trabalho publicado em 2008 no Pediatric Infectious Disease Journal, encontramos a seguinte descrição dos sintomas:

  • Congestão nasal: presente em 59% dos pacientes, com pico no terceiro dia, persistindo em mais de 75% desses casos até o sétimo dia de doença;
  • Coriza: presente em 72% dos pacientes, com pico no terceiro dia e persistindo em mais de 50% no sexto dia;
  • Tosse: presente em 46% no início do quadro, com pico no primeiro dia e persistindo em mais de 50% no oitavo dia;
  • Espirros: em 36% dos casos no primeiro dia, sendo esse o pico, e persistindo em mais de 35% desses no sexto dia;
  • Aumento da temperatura corporal: em 15% no início dos sintomas, com remissão após o terceiro dia;
  • Dor de cabeça: 15% no início dos sintomas e, desses, 15% ainda mantém os sintomas no quarto dia de doença.
  • 75% das crianças estiveram assintomáticas no décimo dia de doença.

A febre, como descrito acima, é normalmente baixa, presente apenas nos primeiros dias de doença e mais comum nas crianças menores. Sendo assim, persistência da febre, piora em sua intensidade ou reaparecimento da mesma ao longo do curso da doença são sinais de alerta para que esse cliente seja reavaliado à procura de complicações.

Ressaltamos também dois pontos importantes na interpretação do quadro agudo de resfriado comum que devem ser levados em consideração para um diagnóstico correto e para evitarmos tratamentos desnecessários:

  • Aproximadamente 2/3 das crianças com resfriado comum têm alteração na pressão da orelha média durante algum momento do curso da doença, o que pode predispor à otite média aguda. Por isso devemos nos atentar na otoscopia e termos consciência de que a presença de secreção retrotimpânica, sem sinais claros de otite aguda, não deve ser considerada como motivo para mudança de diagnóstico ou tratamento. [1]
  • Mais de 60% das crianças com resfriado comum têm algum tipo de alteração em seios da face identificáveis em ressonância magnética, sem que isso signifique sinusite. Ou seja, também não está indicada a mudança do diagnóstico ou do tratamento caso essas alterações sejam encontradas e a criança não apresente demais sinais e sintomas que nos façam suspeitar do diagnóstico de sinusite aguda. [1]

Além dos quadros de complicações do resfriado comum, que descreveremos a seguir, devemos nos atentar para o diagnóstico diferencial com condições clínicas que podem, ao menos em parte, mimetizar os sinais e sintomas do resfriado comum, dentre eles: corpo estranho nasal, aspiração de corpo estranho, rinite alérgica, rinite vasomotora, coqueluche, faringoamigdalite e a síndrome gripal, especialmente causada pelo Influenza.

Talvez a diferenciação mais difícil de ser feita é entre o resfriado e a gripe. Citando o Blog do Ministério da Saúde: “a gripe geralmente é caracterizada por febre alta, seguida de dor muscular, dor de garganta, dor de cabeça, coriza e tosse seca. A febre é o sintoma mais importante e dura em torno de três dias. Os sintomas respiratórios como a tosse e outros, tornam-se mais evidentes com a progressão da doença e mantêm-se em geral de três a cinco dias após o desaparecimento da febre. Alguns casos apresentam complicações graves, como pneumonia, necessitando de internação hospitalar”. O próprio Ministério recomenda o uso do oseltamivir nos pacientes com diagnóstico de síndrome gripal nos pacientes com síndrome respiratória aguda grave ou que façam parte dos grupos de risco. Nós abordaremos esse tema num próximo post.

COMPLICAÇÕES DO RESFRIADO COMUM

  • Otite Média Aguda: o risco é maior em crianças menores de 1 ano. Afeta 5 a 20% das crianças com resfriado comum. Os principais sintomas são otalgia e recrudescimento da febre.
  • Exacerbação da asma: cerca de 50% das exacerbações de asma em crianças são decorrentes de infecções de vias aéreas superiores. Ocorre piora da tosse, ao invés de melhora, podendo aparecer taquidispneia e, ao exame físico, nota-se normalmente sibilância.
  • Sinusite: cerca de 6 a 13% dos resfriados comuns podem evoluir para sinusite bacteriana. Lembramos novamente que uma grande porcentagem (mais de 60%) das crianças com resfriado comum podem apresentar alterações radiológicas de seios da face. O aparecimento da sinusite bacteriana deve ser considerado quando há persistência dos sintomas, sem melhora, após 10 dias de evolução; ou aumento da febre (>39 °C) com secreção nasal purulenta por mais de 3 a 4 dias; ou com piora global da tosse, curva térmica e estado geral durante uma curva de melhora.
  • Pneumonia bacteriana: muito raramente ocorre como complicação de resfriado e deve ser suspeitada quando da piora da tosse e febre e aparecimento de taquipneia, dispneia ou alteração da ausculta pulmonar.

 

OPÇÕES TERAPÊUTICAS – O QUE DEVE E O QUE NÃO DEVE SER FEITO

Existem inúmeras práticas, medicamentosas ou não, que têm sido estudadas ao longo dos anos como terapêutica ao resfriado comum. Muitas delas ainda não têm comprovação científica, entretanto são universalmente difundidas. Outras, porém, são utilizadas por muito de nós, mas a Ciência demonstra claramente que seus riscos superam seus benefícios e que, portanto, não devem ser utilizadas. Nós resumimos abaixo o que as últimas revisões de literatura indicam sobre o que deve e o que não deve ser feito.

mel bom para a gripe

  1. HidrataçãoA manutenção da hidratação tem benefício em diminuir a viscosidade das secreções e, portanto, pode trazer alívio dos sintomas. Devemos recomendar hidratação adequada/abundante. [3,4]
  2. Higiene nasal com solução salina. É um método barato e seguro de auxiliar a remoção de secreção da cavidade nasal e, portanto, promover alívio dos sintomas. Essa melhora sintomática está claramente documentada na literatura e tal prática deve ser recomendada em todas as faixas etárias, com as respectivas adaptações de volume e dispositivos. [3,4]
  3. Ingestão de fluidos aquecidos. A ingestão de alimentos, em especial líquidos (sopas e caldos), aquecidos, preparados adequadamente de acordo com a faixa etária, parece ser benéfica na fluidificação das secreções e, portanto, pode trazer alívio dos sintomas. Não há evidência clara dos benefícios, porém não há malefícios nessa prática. [3,4]
  4. Nebulização com solução salina ou nebulização aquecida. Apesar de amplamente difundida em nosso meio, essa prática é desencorajada pela Organização Mundial da Saúde. A inalação com vapor aquecido apresenta um risco real de queimadura da mucosa das vias aéreas e deve ser evitada. A inalação de vapor de água/soro fisiológico no inalador comum não parece trazer benefício significativo, nem na redução dos sintomas, nem no tempo de evolução da doença.[3,4]
  5. Anti-histamínicos (anti-H1). Apesar de parecer haver certo benefício com relação a alívio dos sintomas nos dois primeiros dias de doença, tais benefícios não persistem, não são significativos e não alteram o curso da doença. Não há alívio da congestão nasal e rinorreia. Portanto, não há recomendação de seu uso sistemático em crianças. Além disso, podem apresentar efeitos colaterais indesejados (especialmente os de primeira geração), tais como sonolência excessiva. Seu uso deve ser, portanto, desencorajado. [3,4,5]
  6. Corticosteroides. Não há recomendação de uso de corticosteroides sistêmicos ou tópicos nos pacientes com resfriado comum. Não há evidência consistente ainda, porém os trials existentes não encontraram benefício em seu uso. [3,6]
  7. Antibióticos. Não há evidência para uso nem de antibióticos orais, nem tópicos no resfriado comum. Esses devem ser reservados para as complicações bacterianas que podem acontecer.[3]
  8. Antivirais. Excetuando-se os casos ocasionados pelo Influenza e que tendem a ser mais compatíveis com síndrome gripal, em que utilizamos tratamento específico, não há qualquer droga antiviral no mercado, hoje, que tenha mostrado eficácia no resfriado comum. Existem, entretanto, drogas em estudo, mas ainda sem liberação para uso. [4]
  9. Vitamina C. Não altera a gravidade dos sintomas, nem o curso da doença. Seu uso deve ser desencorajado, pois não há benefício descrito. [3,4]
  10. Mucolíticos. Apesar do benefício do seu uso em pacientes portadores de doenças pulmonares crônicas, não há evidência de benefício no uso dessa classe de medicações (por exemplo, acetilcisteína) no resfriado comum. [3,4]
  11. ExpectorantesNão há qualquer benefício demonstrado em seu uso em crianças. [3,4]
  12. Sedativos da tosse. Recomenda-se não usar antitussígenos, tais como codeína ou dextrometorfano em crianças. O risco de toxicidade supera em muito os poucos benefícios demonstrados. A Academia Americana de Pediatria e o FDA (Food and Drug Administration) são contra o uso dessas medicações em crianças abaixo de 12 anos. [3,4]
  13. Zinco. Seu uso não é recomendado em crianças. Seus benefícios não foram demonstrados e a incidência de efeitos colaterais é alta. [3,4]
  14. Descongestionantes nasais (simpatomiméticos sistêmicos ou tópicos). Talvez essa seja uma das classes de medicamentos mais utilizadas. Entretanto, é também uma das mais perigosas. As drogas são potencialmente tóxicas em crianças e seus efeitos colaterais são muito frequentes. Pelo alto risco em seu uso, pela incerteza de dose segura em crianças e pela falta de evidências que confirmem seus benefícios na população pediátrica, o uso deve ser limitado e evitado. Caso essas drogas (tais como oximetazolina, fenilefrina ou pseudoefedrina) sejam utilizadas, recomenda-se que fiquem restritas apenas à população acima de 12 anos. [3,4]
  15. Vapores aromáticos. O uso de produtos à base de cânfora e mentol, por exemplo, não tem benefício comprovado e não é recomendado. [3]
  16. Mel. Nas crianças acima de 1 ano de idade, o mel pode ser utilizado no alívio dos sintomas. Há comprovação científica de benefícios na redução da tosse do resfriado comum, especialmente a noturna. [3]
  17. Anticolinérgicos. O ipratrópio em spray nasal demonstrou bastante segurança e eficácia no alívio dos sintomas nasais em adultos. Em crianças acima de 6 anos que estão muito sintomáticas e não melhoraram com as medidas habituais, seu uso pode ser considerado, mas com cautela. [3,4]
  18. Antigripais (combinações de medicações). Tanto a Academia Americana de Pediatria e o FDA quanto a Organização Mundial de Saúde contraindicam seu uso em crianças.
  19. FitoterápicosNão há evidência de benefícios do seu uso em crianças.

MAS, ENTÃO, O QUE FAZER?

medico examinando crianca

Em primeiro lugar, acreditamos que nós, profissionais cuidadores de crianças, devemos nos esforçar para diagnosticar corretamente nossos pequenos clientes. Às vezes, tentamos enxergar uma doença ou uma complicação que não existe. O resfriado comum é a doença aguda mais comum do mundo, é autolimitada e tem baixo índice de complicações. Sendo assim, devemos orientar com calma as famílias e cuidadores, tranquilizando-os e educando-os quanto aos sinais de alerta para que essas crianças sejam reavaliadas e às medidas de prevenção.

Às vezes, tentamos enxergar uma doença ou uma complicação que não existe.

Devemos estimular a realização de medidas caseiras, baratas e seguras de alívio dos sintomas, como a higiene nasal com solução salina, o uso de mel nos maiores de 1 ano, a ingestão de sopas/caldos quentes, o repouso e a administração dos analgésicos/antitérmicos comuns (dipirona, paracetamol) para controle da dor e da febre. Devemos, em primeiro lugar, lembrar do nosso dever ético profissional de primum non nocere e evitarmos o uso de medicações desnecessárias, com benefícios duvidosos e com efeitos colaterais potencialmente indesejados e graves. É importante, também, evitar o uso de sedativos da tosse e de descongestionantes nasais em crianças abaixo dos 12 anos. Façamos um correto diagnóstico das complicações e atuemos somente conforme a necessidade.

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Dr. Sidney Volk

Médico pediatra especializado em medicina intensiva pediátrica, com graduação e especialização pela Unicamp. Membro do corpo editorial do PortalPed.

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