Patologias Cirúrgicas Ambulatoriais — Quando Encaminhar ao Cirurgião?
Neste post vamos conversar um pouco sobre as patologias cirúrgicas sem caráter de emergência que encontramos no nosso dia a dia de consultório e que geram dúvidas em seu diagnóstico e sua condução.
Fimose
Dentro desse grupo de situações em que não há exposição completa da glande, precisamos abordar 3 diferentes diagnósticos:
-
Aderência bálano-prepucial:
O prepúcio se desenvolve a partir de uma dobra epitelial na base da glande. Sendo assim, o revestimento interno do prepúcio é contíguo à glande, o que explica a ocorrência de aderências entre as 2 camadas. Somente 4% dos meninos conseguem expor totalmente a glande ao nascimento. Cerca de 50% dos recém-nascidos não são capaz nem de expor o meato uretral. Portanto, isso não é considerado uma patologia ao nascimento.
Essa aderência bálano-prepucial, ou fimose fisiológica, é benigna e a sua taxa de resolução espontânea é altíssima. Não existem estudos randomizados e controlados, porém a orientação globalmente aceita é que o “exercício de prepúcio” no banho e nas trocas de fraldas progressivamente levará à resolução completa do quadro. A aderência bálano-prepucial é, portanto, de tratamento clínico. Ela se desfaz com o tempo (produção de smegma, ereções intermitentes) e com os “exercícios de prepúcio”. Pode haver melhora com o uso de corticoide de baixa potência e hialuronidase [1].
-
Parafimose
Definida pela migração do anel fibrótico da fimose para além do sulco coronal (ou balânico), com estrangulamento da glande. Inicialmente leva a congestão venosa e linfática, porém a evolução do edema pode levar a obstrução do fluxo arterial.
A parafimose, por sua vez, é uma urgência, pelo risco de estrangulamento da cabeça do pênis, com isquemia. Caso não seja possível sua redução manual, a abordagem cirúrgica deverá ser imediata.
Existem diversas técnicas descritas, porém ressaltamos algumas dicas: considere analgesia sistêmica e/ou local para que haja maior cooperação do paciente; aplique lubrificante a base de água na glande; o gelo pode ajudar a diminuir o edema suficientemente para que seja feita a redução; a compressão manual do pênis por alguns minutos também pode ajudar, aumentando o retorno venoso e, diminuindo a congestão e, assim, facilitando a redução; caso haja sinais de isquemia, não deve haver qualquer atraso, sendo a conduta resolutiva imediata obrigatória [2].
-
Fimose
Definida pela não exposição da glande decorrente de um anel fibrótico (cicatricial) no orifício do prepúcio, normalmente decorrente de traumas repetidos, inflamação e infecção. Por sua vez, ela aumenta o risco de aparecimento de complicações, tais como: balanopostite de repetição, infecção urinária de repetição, ereção dolorosa, disúria e a própria parafimose.
O uso de corticoide tópico de baixa potência (betametasona 0,05% – 0,1%), assim como sua associação com a hialuronidase, têm mostrado eficácia no tratamento dessa situação clínica e reduzido a necessidade de indicação cirúrgica [1].
Quanto à fimose (fimose patológica), por sua vez, sempre fica uma pergunta: existe momento ideal para a realização da cirurgia?
A resposta não é exata. Devemos sempre levar em consideração o desconforto que isso causa na criança e a sua fase de desenvolvimento. Devemos estar atentos ao aparecimento das complicações descritas acima, o que levaria a antecipar a tomada dessa decisão. Mas nossa orientação é que a família seja orientada e tranquilizada, que o tratamento clínico seja realizado por pelo menos 6 semanas e o encaminhamento ao cirurgião seja feito oportunamente, sem gerar angústias na família, preferencialmente antes do início da puberdade.
Hérnia inguinal/Hidrocele
Também gostaríamos de iniciar este assunto relembrando detalhes anatômicos e embriológicos da pelve e da parede inguinal, que consideramos essenciais para melhor compreensão do tema.
A grande maioria das hérnias inguinais da infância é do tipo indireta, resultante da permeabilidade do conduto peritônio-vaginal. Lembramos que a diferenciação das gônadas entre testículos e ovários ocorre até a oitava semana de gestação e o conduto peritônio-vaginal está presente, normalmente, até a décima segunda semana. Os testículos, formados intra-abdominalmente, descem pelo retroperitôneo para a região do anel inguinal interno por volta da 28ª semana de gestação. A partir daí, leva mais cerca de 4 semanas para migrar para o escroto. Os ovários também apresentam essa descida para o interior da pelve, porém sem migrar para fora do abdômen. O conduto vaginal se oblitera ao final da gestação, um pouco mais cedo nas meninas, e a falha nesse processo de fechamento permite que líquido ou vísceras abdominais escapem da cavidade peritoneal, dando origem às anormalidades inguino-escrotais da infância.
A falha completa na obliteração do conduto predispõe a uma hérnia inguinal completa; a obliteração distal, com persistência proximal do conduto, resulta na hérnia inguinal indireta clássica; a obliteração proximal, com persistência distal, normalmente gera a hidrocele, que pode ainda ser originada de uma obliteração parcial tanto distal, quanto proximal (hidrocele comunicante).
Um dado curioso é que a persistência da permeabilidade do conduto vaginal é 2 vezes mais frequente do lado direito. Cerca de 60% das hérnias ocorrem do lado direito e 10% bilateralmente. Os meninos apresentam incidência 6 vezes maior que as meninas. Vale ressaltar que a patência do conduto vaginal nem sempre resultará em hérnia. A incidência de hérnia inguinal indireta congênita varia de 3 a 5% nos recém-nascidos a termo e essa incidência aumenta mais do que 2 vezes em prematuros.
A história clássica da hérnia inguinal é o abaulamento da região inguinal notado pela família durante o choro ou situações de esforço, que causem aumento da pressão intra abdominal. O abaulamento normalmente desaparece no repouso ou permite redução manual. É comum o relato de aumento progressivo no volume do abaulamento. Durante o exame físico tal protusão é nítida e pode ser desencadeada por manobras que aumentem a pressão intra-abdominal.
A preocupação mais temida da hérnia inguinal é o encarceramento, situação na qual o conteúdo intraperitoneal herniado não pode ser reduzido e sofre isquemia, podendo levar a necrose e perfuração (hérnia estrangulada). Essa situação é uma emergência médica e não será abordada neste momento. Diagnósticos diferenciais dessa entidade são: adenopatia inguinal aguda supurativa, torção testicular e hidrocele aguda. A incidência de encarceramento gira ao redor de 15% dos casos de hérnia inguinal e ocorre normalmente durante o primeiro ano de vida, variando de maneira inversamente proporcional à idade, podendo chegar a 25-30% nos menores de 6 meses. Outra complicação do encarceramento é a atrofia testicular, que pode ocorrer em até 30% dos casos.
Pela incidência elevada de complicações, o tratamento da hérnia inguinal, mesmo que essas complicações não tenham ocorrido, deve ser cirúrgico. Nos casos de hérnias redutíveis sem encarceramento, a criança deve ser encaminhada ao cirurgião o mais breve possível para que a correção cirúrgica seja feita eletivamente, porém com presteza. Nos casos de encarceramento sem estrangulamento nos quais a redução manual seja possível, a abordagem cirúrgica deve ocorrer, preferencialmente, nos dias subsequentes, caso as condições clínicas da criança permitam. Como já foi dito, se o estrangulamento ocorrer, a abordagem cirúrgica deve ser imediata.
Há uma incidência de herniação contralateral que varia entre 10 a 40% em crianças com menos de 2 anos de idade. Dessa forma, em meninas, que possuem menor risco de lesão de estruturas nobres durante a cirurgia, a abordagem bilateral é sempre efetuada. Nos meninos, tal abordagem deve ser analisada caso a caso, de acordo com as condições clínicas envolvidas, assim como faixa etária e grau de entendimento da família.
Na hidrocele, não há herniação de conteúdo intra-abdominal pelo canal vaginal, tampouco ectopia testicular. Há, entretanto, patência deste canal, com acúmulo de líquido na bolsa escrotal. É uma patologia benigna, mas que causa, porém, muita angústia nos cuidadores e, em raros casos, desconforto na criança. No exame físico o pediatra nova aumento e assimetria da bolsa escrotal, de consistência cística. Pode ser possível a individualização do testículo à palpação. A contra iluminação ajuda no diagnóstico. Também com o fortalecimento da musculatura abdominal com a posição ereta e o desenvolvimento da marcha, deve ocorrer o fechamento espontâneo deste canal e a resolução da hidrocele por si só. Nos casos em que ela for muito volumosa e tensa e o desconforto também for muito intenso, pode-se discutir a correção cirúrgica, mas, devido à benignidade do quadro, a orientação mais correta a ser dada à família é esperar. Contudo, nos casos em que a resolução espontânea não ocorrer até os 18 meses, tais pacientes devem ser referenciados ao cirurgião.
Hérnia umbilical
Outra queixa extremamente frequente na puericultura é a hérnia umbilical. Quem nunca recebeu no consultório uma família que já amarrou uma moeda no umbigo da criança com o intuito de “fazer sumir esse negócio”?
Em primeiro lugar, devemos lembrar a função primordial do umbigo: ele é, na verdade, a cicatriz umbilical, local vital no período intrauterino para circulação materno-fetal e, portanto, para nutrição do feto. Sendo assim, é natural que a musculatura da parede abdominal do feto seja frouxa para que não haja qualquer risco de estrangulamento do cordão. Com o nascimento e posterior crescimento da criança, o exercício da flexão do corpo leva a um progressivo fortalecimento da musculatura abdominal.
É comum, portanto, que haja uma diástase dos músculos retos abdominais nos primeiros meses, com uma hérnia de conteúdo abdominal ao longo de toda a linha média do abdômen. A cicatriz umbilical, por ser o local mais frágil desta linha, é o local mais propício para herniação e formação da hérnia umbilical. São fatores de risco para seu aparecimento: raça negra e prematuridade. O quadro clínico típico é de abaulamento na região umbilical durante o esforço e o choro, com resolução espontânea ou redução manual fácil.
Normalmente, quando a criança adquire a postura ereta (ao redor do primeiro ano de vida), o fortalecimento dessa musculatura abdominal, em especial dos músculos retos abdominais, leva ao fechamento natural dessa hérnia. Além disso, a ocorrência de encarceramento, diferentemente da hérnia inguinal, é bastante rara. Ou seja, não está indicada a correção cirúrgica antes dos 5 anos de vida, a não ser que haja encarceramento ou haja aumento progressivo depois que a criança esteja com a postura ereta e a marcha bem estabelecidas.
Criptorquidia
O exame clínico da bolsa escrotal é parte essencial do exame físico do recém nascido e da criança nos primeiros anos de vida.
A criptorquidia, palavra originada do grego kryptós (escondido) e órkhis (testículo), é definida pelo posicionamento do testículo fora da bolsa escrotal. Ele pode estar no canal inguinal ou intra-abdominal. É o distúrbio da diferenciação sexual mais frequente em meninos, acometendo cerca de 4% dos recém-nascidos do sexo masculino. A maioria dos testículos retidos desce espontaneamente até os 6 meses de vida, reduzindo a incidência da ectopia para valores abaixo de 1%.
A posição mais frequente do testículo criptorquídico é o canal inguinal. Apenas 10% dos casos tem o testículo impalpável, sendo que, em aproximadamente metade desses casos, ele está ausente, fato decorrente de torção perinatal e atrofia. Devemos lembrar que criptorquidia bilateral é um sinal de alerta para diagnóstico diferencial com hiperplasia adrenal congênita, que leva à virilização de meninas.
Uma situação clínica que nos confunde, mas que é totalmente benigna, é a presença de testículos retráteis, devido a um reflexo cremastérico mais intenso, comum na primeira infância.
Devemos lembrar também que a bolsa escrotal e, em especial, a musculatura cremastérica, tem função essencial na homeostase testicular. Ela mantém o testículo cerca de 1 a 2 graus mais frio do que a temperatura intra-abdominal, o que é essencial na espermatogênese. O testículo retido já possui alterações histológicas demonstradas aos 12 meses de vida, ou seja, a criptorquidia não resolvida tem como consequência a azoospermia e a infertilidade. No entanto, a principal complicação da criptorquidia é a malignização testicular: existe um aumento de risco para neoplasia testicular de 4 a 10 vezes em relação à população geral quando o testículo permanece intra-abdominal.
Assim, a cirurgia corretiva, chamada de orquidopexia, deve ser realizada o quanto antes, preferencialmente dentro dos 15 primeiros meses de vida, sendo imperativo o referenciamento ao cirurgião antes do primeiro ano de vida.
Gostou do post? Curta! Compartilhe Conhecimento!
Referências bibliográficas/textos-base:
- Nelson – Tratado de Pediatria, 17ª edição. Behrman et al. Ed. Elsevier
- Uptodate.com