Autismo, genes e o jeito de uma criança olhar para você
Estudo encontra forte influência genética na maneira como crianças olham para rostos. Descoberta pode gerar novos tratamentos para o autismo.
Discutimos a seguir os principais dados sobre a síndrome e apresentamos os resultados surpreendentes de um novo estudo, que utilizou tecnologia de eye tracking em bebês e traz implicações importantes no autismo.
O autismo é um assunto complicado para pais e profissionais da saúde. A começar pelo diagnóstico — nem sempre simples de ser realizado — até a definição de quais seriam os melhores tratamentos, o autismo ainda é cercado de incertezas.
Mas uma nova pesquisa, divulgada na última edição do respeitado periódico científico Nature, pode ajudar médicos a identificar logo cedo os primeiros sinais do distúrbio e desenvolver estratégias mais eficientes para combater seus principais efeitos cognitivos.
A pesquisa utilizou tecnologia de rastreamento visual em bebês para entender melhor o que atraía o olhar dos pequenos. O estudo envolveu a análise de duplas de gêmeos, alguns idênticos e outros fraternos, e identificou um impressionante fator genético na maneira como as crianças interagiam com o mundo. Tais fatores podem ser a chave para um diagnóstico mais precoce do autismo, melhorando as possibilidades de tratamento.
DADOS SOBRE O AUTISMO
O autismo é uma condição de difícil diagnóstico — tão difícil que a síndrome entrou na Classificação Internacional de Doenças da Organização Mundial da Saúde apenas em 1993. Desde então, pesquisadores buscam por fatores genéticos que poderiam ser identificados por um exame de sangue, por exemplo, para auxiliar na detecção precoce.
Até mesmo os números do autismo são uma incógnita. Dados não oficiais do Centers for Disease Control dos Estados Unidos estimam que, em 1990, havia 1 caso para cada 2,5 mil crianças. Hoje, o número é de 1 para 88 (ou até 1 para 68, de acordo com outras estimativas). O Brasil não possui dados oficiais do autismo, mas alguns apontamentos indicam que há pelo menos 2 milhões de pessoas com a síndrome no país.
Algumas das principais características notadas por pais e pediatras nas crianças e que são os primeiros indícios de autismo são:
- Anormalidade no contato visual: as crianças demonstram pouquíssimo interesse em olhar para rostos, mas preferem observar objetos. Quando olham para pessoas, focam na boca e no corpo, evitando os olhos (quando o comum é o contrário).
- Atraso na fala: é o sintoma mais facilmente percebido pelos pais, e que costuma gerar os primeiros questionamentos com o pediatra.
- Falta de atenção e dissociação com o nome: outro sintoma comum é a criança deixar de atender quando é chamada, além de demonstrar pouco interesse com o que acontece ao seu redor. Em uma consulta médica, por exemplo, a criança pode continuar brincando tranquilamente após o médico entrar na sala, como se nada de diferente estivesse ocorrendo.
Quanto mais cedo for feito o diagnóstico, mais cedo poderão ser iniciados os tratamentos para mitigar as deficiências cognitivas do autismo, melhorando o prognóstico das crianças. Tais tratamentos, idealmente, envolvem em larga escala a família, além de profissionais multidisciplinares como fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais e comportamentais e tutores.
“A criança no extremo do espectro [do autismo] tem seu comportamento bastante comprometido, enquanto a pessoa de grau leve pode ser extremamente brilhante”
Dr. Estevão Vadasz, professor do Instituto de Psiquiatria (IPq) da USP
Revista Espaço Aberto (USP), 170
ESTUDO RASTREIA A VISÃO DE BEBÊS
O novo estudo publicado na Nature foi conduzido por pesquisadores das Faculdades de Medicina da Universidade de Washington e da Universidade Emory, ambas nos Estados Unidos.
Sabendo da enorme dificuldade em diagnosticar, de maneira precoce e precisa, o autismo — além de conhecerem os dados de pesquisas recentes, que mostram uma tendência maior ao autismo em crianças de 2 a 6 meses que progressivamente evitam contato visual —, os pesquisadores utilizaram um plano ambicioso para tentar identificar componentes genéticos na maneira como as crianças observam o mundo.
Para tanto, estudaram 338 crianças, de 18 a 24 meses de idade. Destas, havia 41 pares de gêmeos idênticos (compartilham 100% do DNA) e 42 fraternos (compartilham cerca de 50% do DNA). 84 crianças não eram relacionadas por sangue e 88 já haviam sido diagnosticadas com alta tendência ao autismo.
Utilizando uma moderna tecnologia de rastreamento da posição de ambos os olhos das crianças (completamente não invasiva e feita à distância), os cientistas analisaram para onde elas olhavam enquanto vídeos de pessoas conversando e realizando diversas ações eram exibidos em um monitor.
Os resultados foram surpreendentes.
TIMING VISUAL PERFEITO ENTRE GÊMEOS
A quantidade de tempo que um gêmeo idêntico passou olhando para os olhos ou a face de outra pessoa, no teste, foi quase perfeitamente espelhado pelo comportamento do outro gêmeo.
Além de passarem a mesma quantidade de tempo intrigados com as faces, os gêmeos idênticos mostraram-se extremamente “sincronizados”: as probabilidades eram altas de que ambos moveriam os olhos em um mesmo momento exato dos vídeos, para as mesmas direções e focando nos mesmos pontos. A sincronia era tão perfeita que muitas dessas mudanças de direção do olhar foram espelhadas pela outra criança com uma diferença mínima, de 17 milissegundos.
Entre irmãos fraternos, o movimento ocular de um dos gêmeos foi correlacionado com menos de 10% dos movimentos do outro gêmeo.
Além disso, na maioria das crianças, a atenção foi preferencialmente dada às regiões dos olhos e da boca nos vídeos. E essa característica foi a mais marcantemente diferente nas crianças com autismo.
“A correspondência momento a momento do timing e da direção das mudanças de direção do olhar, em gêmeos idênticos, foi impressionante, deixando transparecer um nível muito preciso de controle genético“, explicou o principal autor do estudo, o médico e professor de psiquiatria e pediatria John N. Constantino, da Universidade de Washington.
“Estas novas descobertas mostram um mecanismo específico por meio do qual os genes podem modificar a experiência de vida de uma criança”.
“Duas crianças em uma mesma sala, por exemplo, podem ter experiências sociais completamente diferentes se uma carrega a tendência inata de focar nos objetos enquanto a outra olha para os rostos, e essas diferenças podem entrar em ação repetidamente enquanto o cérebro se desenvolve na primeira infância”, diz o pesquisador.
Mais resultados da pesquisa:
– a quantidade de tempo que um gêmeo idêntico passou olhando para os olhos de uma das pessoas no vídeo foi igual ao do outro irmão em 91% dos testes.
– Em gêmeos fraternos, essa correspondência caiu para 35%.
– Em crianças não relacionadas umas com as outras, o número despencou ainda mais, para 16%.
O COMPONENTE GENÉTICO DE COMO AS CRIANÇAS VÊEM O MUNDO
A partir desses dados, os pesquisadores acreditam ter identificado um fortíssimo componente genético que ajuda a explicar a maneira como as crianças interagem visualmente com o ambiente. E isso pode ter implicações consideráveis no caso do autismo.
Apesar desta forte influência dos genes no comportamento infantil, os pesquisadores são categóricos: gêmeos podem ter o mesmo DNA, mas eles não têm experiências iguais, nem cérebros iguais.
A correspondência encontrada no estudo demonstra meramente que possuímos genes que ajudam a construir ‘caminhos neurais’ que guiam a maneira como obtemos informações visuais do mundo, facilitando nossa socialização.
“Nós passamos anos estudando a transmissão de susceptibilidade ao autismo em famílias, e agora nos parece que, ao monitorar o movimento dos olhos na infância, poderemos identificar um fator-chave ligado aos riscos genéticos para a doença, e que está presente muito antes de podermos fazer um diagnóstico clínico”, diz Constantino.
Ao identificar precocemente a tendência de uma criança de olhar mais para objetos do que para rostos, profissionais da saúde podem desenvolver mais cedo intervenções que a corrijam, combatendo um dos efeitos mais socialmente debilitantes do autismo.
Além disso, os dados do estudo podem ajudar a compreender por que crianças que evitam olhar para rostos quando pequenas podem se desenvolver normalmente em termos sociais. Talvez elas sejam uma fonte riquíssima de insights sobre o que fazer para compensar a tendência inata de olhar o mundo de uma maneira não usual.
“Agora que sabemos que a orientação visual social é fortemente influenciada por fatores genéticos, nós temos uma nova maneira de traçar os efeitos diretos desses fatores no desenvolvimento social das crianças”, explica Constantino, esperançoso. “Podemos, também, criar intervenções que garantam que crianças em risco de autismo adquiram os inputs sociais que elas precisam para crescer e se desenvolver normalmente”, afirmou o pesquisador.
PARA SABER MAIS
- Infant viewing of social scenes is under genetic control and is atypical in autism. Constantino JN et al.
Nature (2017).