Febre e Febrefobia
“Doutor, meu filho está apresentado febre! Quantas vezes preciso acordar à noite para medir a temperatura e dar remédio?”
A febre em crianças é um dos sintomas mais comum de doenças, normalmente causada por infecções virais autolimitadas. Apesar de não ser danosa por si só, pode estar associada a dores e desconforto.
É bem comum que pais e cuidadores fiquem preocupados quando a febre aparece e queiram eliminá-la o quanto antes. Mas isso nem sempre é uma boa ideia. É preciso entender a febre, saber por que ela existe e como age no corpo. Somente assim poderemos diminuir algo que os pediatras chamam de “febrefobia”, isto é, o “medo” em relação à febre.
A febre é a primeira causa de consultas médicas na infância, e é também o principal motivo pelo qual as crianças tomam remédios.
Quem não conhece bem esse “inimigo” e tiver “medo” dele certamente não tomará as melhores decisões. Hora de reverter esse cenário!
O QUE É A “FEBREFOBIA”?
A literatura médica mostra que complicações decorrentes de temperatura acima dos 40ºC, como convulsão ou insolação, são eventos extremamente raros. Todavia, preocupam sobremaneira a maioria dos pais.
Desde 1980, estudos têm utilizado o termo “febrefobia” para explicar a ansiedade indevida em relação à febre. [1] Já naquela época, estes trabalhos demonstravam que a maioria dos pais se preocupa demais com as possíveis consequências dela. Por exemplo, a maioria crê que febre de 40 °C ou mais poderia causar danos neurológicos sérios, ainda que a literatura mostre que complicações como convulsões ou heat strokes (efeitos deletérios que o excesso de temperatura causa no corpo) são eventos extremamente raros.
Além disso, os pais frequentemente temem que a febre possa ser um primeiro sinal de infecção grave, outra condição rara na gama de doenças febris na infância, principalmente a era pós-vacina.
Se as consequências severas da febre são incomuns, os estudos médicos recomendam, portanto, que os pais sejam educados. É importante que pais e cuidadores saibam que a febre é benigna na maior parte dos casos, e que saibam também como se comportar quando ela, mais cedo ou mais tarde, surgir.
Mas, convenhamos, escrever recomendações é fácil. Difícil é estar com uma criança doente em casa, com febre alta, e não saber como agir! Espantosamente, quatro décadas depois desses primeiros estudos, ainda enfrentamos essa mesma angústia…que tal, ao invés, aprendermos a fundo sobre a febre, para sabermos como tratar melhor os nossos pequenos e evitarmos a “febrefobia”
3 TÓPICOS QUE VOCÊ PRECISA SABER SOBRE A FEBRE
Várias publicações médicas oficiais existem em todo o mundo buscando normatizar o comportamento dos pais e médicos diante de quadros febris. As recomendações gerais são:
- Saber o que é a febre, por que ela existe e como afeta o corpo;
- Quais medicamentos antitérmicos usar e quando iniciar este uso [2];
- Como os pais devem agir quando a criança tiver febre?
Vamos analisar em detalhes esses três tópicos a seguir.
1 – O QUE É A FEBRE
A Temperatura Normal do Corpo
A temperatura do nosso corpo se mantém basicamente constante ao longo do dia, na casa dos 37ºC, sendo controlada no cérebro pelo centro regulador de temperatura, que fica no hipotálamo anterior (Figura 1).
Pode parecer incrível, mas no geral as variações de temperatura são relativamente pequenas. Pode estar frio, pode estar quente, pode estar super frio, pode estar super quente, mas nós humanos somos capazes de manter uma temperatura corporal mais ou menos estável, dia após dia. Isso porque o centro regulador de temperatura equilibra o excesso de produção de calor, proveniente da atividade metabólica nos músculos e no fígado, e dissipa-o através da pele e dos pulmões.
Apesar de tanto “equilíbrio” de temperatura, algumas pequenas variações naturais ocorrem. A temperatura varia um pouquinho de uma pessoa para outra, varia com a idade, varia com a saúde. Um exemplo interessante é o quanto a temperatura varia em uma mesma pessoa ao longo do dia. De modo geral, tipicamente ela aumenta 0.5 °C do início da manhã até o final da tarde. No entanto, em indivíduos se recuperando de doenças febris, essa variação chega a 1.0 °C. Mesmo em processos febris, essa relação é mantida, mas seus valores são maiores. Mulheres no ciclo ovulatório normalmente têm a temperatura ligeiramente mais baixa pela manhã nas semanas que antecedem a ovulação, elevando-se cerca de 0.6 °C no período pós-ovulatório. [3]
Febre: Termos e Definições
Febre
Febre ocorre quando o aumento da temperatura corporal é regulado pelo hipotálamo.
Para uma boa compreensão, de maneira bem simples, podemos dizer que nosso hipotálamo funciona como um termostato. Durante a febre, o ponto de ajuste da temperatura corporal no centro termorregulatório hipotalâmico é ajustado para cima, desencadeando processos de termogênese (ou seja, produção de calor) e redução da perda de calor pelas extremidades do corpo.
Quando ocorre esse aumento do ponto de ajuste de temperatura no hipotálamo, em um processo regulado por citocinas e pela prostagladina E2 (PGE2), há ativação de neurônios do centro vasomotor, que iniciam vasoconstrição, e de neurônicos sensíveis ao calor, que aumentam a produção de calor pela periferia.
É por conta dessa vasoconstrição periférica que se dá a sensação de frio nas mãos e nos pés dos pacientes febris. Esse processo, por si, só é capaz de aumentar a temperatura corporal em cerca de 1 a 2 °C.
Além disso, nós, humanos, adotamos medidas comportamentais nessas condições, com redução de nossa exposição a situações que promoveriam o resfriamento, em especial pelo do uso camadas adicionais de roupas, pela procura de ambientes mais quentes e pela redução de atividade.
Esses processos de geração de calor continuam até que a temperatura atinja o valor determinado. Quando o centro regulador de temperatura hipotalâmico é reajustado para a temperatura “normal”, o processo de perda de calor é acelerado pela vasodilatação e sudorese.
Hipertermia
Existem situações em que a temperatura corporal se eleva acima do “normal” sem a participação do hipotálamo. A isso chamamos de hipertermia.
Insolação, certas doenças metabólicas e alguns agentes farmacológicos com efeitos na termorregulação são suas principais causas.
Na hipertermia, a produção ou aquisição de calor supera a capacidade do corpo de perder temperatura, levando a um aumento rápido dela. Como independe dos sistemas “tradicionais” de controle de temperatura do corpo, a hipertermia pode ser fatal se não tratada.
O tratamento da hipertermia é diferente daquele da febre. Como o ajuste hipotalâmico continua normal, antitérmicos não produzem efeito, de modo que medidas externas de resfriamento são requeridas.
2 – COMO TRATAR A FEBRE?
O Manejo da Febre Segundo a OMS
A Organização Mundial de Saúde (OMS), em publicação de 2005 (com segunda edição em 2013), faz referência a temperaturas medidas por via retal em crianças, considerando que as medições por via oral e axilar são, em geral, 0.5 °C e 0.8 °C menores, respectivamente.
O documento pressupõe que a febre, por si só, não é uma indicação para o uso de antibióticos e que ela pode ajudar o sistema imunológico contra infecções. No entanto, febre alta (>39 °C) pode ter efeitos negativos, como:
- Redução do apetite;
- Tornar a criança irritada;
- Precipitar convulsões em algumas crianças entre 6 meses e 5 anos com predisposição genética a convulsões febris;
- Aumentar o consumo de oxigênio, o que pode piorar o estado clínico de pacientes com, por exemplo, pneumonia graves, insuficiência cardíaca e meningite.
Recomenda que todas as crianças com febre sejam examinadas para sinais e sintomas que indiquem sua causa subjacente, bem como que tratamento congruente ao quadro seja instituído.
Como regimes antipiréticos, recomenda que sejam usados o paracetamol e o ibuprofeno. Eles estariam restritos às crianças com ≥39 °C e que apresentam sinais de incômodo por conta da temperatura elevada. Crianças que estão alertas e ativas pouco provavelmente se beneficiam do uso dessas drogas.
O ibuprofeno seria comparável ao paracetamol em eficácia. Porém, sendo um anti-inflamatório, tem o potencial de causar gastrite e é ligeiramente mais caro. Outros agentes, como o AAS (ligado à síndrome de Reye e contraindicado em casos suspeitos de catapora, dengue e outras síndromes hemorrágicas) não estaria recomenda.
Tratamento sem medicamentos
Antipiréticos são a forma mais eficaz de se baixar a temperatura. O uso de medidas físicas [de controle da temperatura] estaria restrito aos casos de hipertermia
Nem sempre medicações são necessárias. Se a febre não estiver alta ou a criança estiver se sentindo razoavelmente bem, disposta a brincar e a comer, o recomendado é evitar a medicação.
Nesses casos, o manual da OMS encoraja vestir as crianças com roupas leves, mantê-las num quarto morno e bem ventilado e aumentar a oferta de líquidos para elas. Hidratação é fundamental, e não deve ser jamais esquecida pelos pais!
É importante salientar que mecanismos físicos, como compressas frias, banhos ou uso de cobertores térmicos (mais comuns em ambientes hospitalares) são praticamente ineficazes, uma vez que o hipotálamo, funcionando como um termostato, continuará promovendo mudanças para que haja aumento da temperatura. Antipiréticos, são a forma mais eficaz de se baixar a temperatura quando for necessário. Assim, o uso de medidas físicas estaria restrito aos casos de hipertermia.
Como reduzir a ansiedade em relação à febre
Como vimos acima, a febre é um fenômeno natural e, na maior parte, benéfico à saúde, ajudando a combater infecções. Precisa ser acompanhada constantemente e com atenção, mas sem “paranoias” ou “fobias”.
Esforços ainda são necessários para diminuir a ansiedade dos pais e, em alguns casos, dos profissionais de saúde em relação à febre. Intervenções de educação em saúde a respeito de febre em crianças podem necessitar de métodos alternativos para atingir os pais. Orientações simples e claras são essenciais. Para isso, o uso de apps para smartphones e tablets, guias impressos, conselhos durante visitas médicas, comerciais na TV e até mesmo campanhas online podem funcionar muito bem!
É necessário, também, que haja consenso internacional com relação a essas informações, incluindo consenso sobre métodos de aferição de temperatura, a definição do que é desconforto na criança e indicações claras de tratamentos físicos e medicamentosos. Assim que novas decisões forem tomadas sobre estes assuntos, atualizaremos nosso conteúdo aqui no PORTALPED!
REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS
- Schmitt BD. Fever phobia: misconceptions of parents about fevers. Am J Dis Child.
- Bertille N, Purssell E, Hjelm N, Bilenko N, Chiappini E, de Bont EGPM, Kramer MS, Lepage P, Lava SAG, Mintegi S, Sullivan JE, Walsh A, Cohen JF and Chalumeau M (2018) Symptomatic Management of Febrile Illnesses in Children: A Systematic Review and Meta-Analysis of Parents’ Knowledge and Behaviors and Their Evolution Over Time. Front. Pediatr. 6:279. doi: 10.3389/fped.2018.00279
- Porat R, Dinarello CA, Weller PF, Sullivan M. Pathophysiology and treatment of fever in adults. Disponível em UpToDate: https://www.uptodate.com/contents/pathophysiology-and-treatment-of-fever-in-adults/print?search=fever&source=search_result&selectedTitle=5~150&usage_type=default&display_rank=5. Acesso em 5 de maio de 2019
- World Health Organization. Management of Fever. Pocket Book of Hospital Care for Children: Guidelines for the Management of Common Illnesses With Limited Resources. WHO (2005).